Cortesia
de wikipedia e jdact
A
área de Broca
«(…)
Tóquio. Bomba atómica em Hiroshima. O general MacArtbur... Chega, chega. É como
se recordasse tudo aquilo que se aprende por ter lido em algum lugar ou ouvido
dizer, mas não o que está associado às suas experiências directas. Sabe que
Napoleão foi derrotado em Waterloo, mas tente me dizer o que se lembra da sua
mãe. Mãe só tem uma, mãe é mãe... Mas de minha mãe não me lembro. Imagino que
tive uma mãe porque sei que é uma lei da espécie, mas..., aí está..., a névoa.
Estou mal, doutor. É horrível. Preciso de alguma coisa para dormir de novo.
Vou-lhe receitar, já exigi demais do senhor. Deite-se bem, assim, assim... Repito,
acontece, mas tem cura. É preciso muita paciência. Mandarei que lhe tragam alguma
coisa para beber, um chá por exemplo. Gosta de chá? Talvez sim, talvez não.
Trouxeram-me
o chá. A enfermeira fez-me sentar apoiado nos travesseiros e colocou um
carrinho na minha frente. Colocou água fumegante numa xícara com um envelope pequeno
dentro. Devagar que queima, disse. Devagar como? Cheirava a taça e sentia um
cheiro, como dizer, de fumaça. Queria provar o sabor do chá ou infusão, agarrei
a xícara e engoli. Atroz. Um fogo, uma chama, uma bofetada na boca. Então é
isso o chá fervente. Deve ser assim também com o café e a camomila de que tanto
falam. Agora sei o que quer dizer queimar. Todos sabem que não se deve tocar o
fogo, mas eu não sabia em que momento se pode tocar em água quente. Tenho que
aprender a entender o limite, o momento no qual antes não pode e depois pode.
Mecanicamente soprei o líquido, depois mexi com a colherinha, até decidir que
já podia tentar outra vez. Agora o chá estava morno e bom de beber. Não estava
certo de qual era o gosto do chá, qual o do açúcar, um deveria ser áspero e o
outro doce, mas qual é o doce e qual o áspero? Juntos porém me agradavam.
Beberei sempre chá com açúcar. Mas não fervente. O chá me deu uma sensação de
paz e relaxamento e peguei no sono.
Acordei
de novo. Talvez porque no sono eu estava coçando a virilha e o escroto. Debaixo
das cobertas suei. Chagas de decúbito? Avitilha é húmida, mas passando-se a mão
nela de modo demasiado enérgico, depois de uma primeira sensação de prazer
violento, sente-se uma fricção desagradável. Com o escroto é melhor: passando-o
por entre os dedos, delicadamente devo dizer, sem chegar a apertar os
testículos, sente-se algo de granuloso e levemente peludo: é bom coçar o
escroto, não é que a coceira suma logo, torna-se aliás mais forte, mas dá mais
gosto de continuar. O prazer é a cessação da dor, mas a coceira não é uma dor,
é um convite a se dar prazer. A comichão da carne. Transigindo-se com isso
comete-se pecado. O jovem prevenido dorme supino com as mãos cruzadas no peito
para não cometer actos impuros no sono. Coisa estranha, o prurido. E os meus tom….
Você é um escroto. Aquele sim tem os tom… roxos.
Abri
os olhos. Na minha frente há uma senhora, não muito jovem, mais de cinquenta,
me parece, com pequenas rugas em torno dos olhos, mas com um rosto luminoso,
ainda fresco. Algumas mechas brancas, quase imperceptíveis, quase como se ela
as tivesse clareado de propósito, uma socialite, como quem dissesse não quero
passar por uma mocinha mas suporto bem a minha idade. Era bonita, mas quando
jovem deve ter sido belíssima. Acarinhava minha testa. Yambo, disse-me. Lambo
quem, senhora? O senhor é Yambo, é assim que todos o chamam, E eu sou Paola.
Sou sua mulher. Me reconhece? Não senhora, desculpe, não Paola, sinto muito, o
doutor deve ter lhe explicado.
Explicou,
Não sabe mais o que aconteceu com você, mas ainda sabe muito bem o que
aconteceu com os outros. Como eu faço parte da sua história pessoal, não sabe
mais que somos casados há mais de trinta anos, Yambo, querido. E temos duas
filhas, Carla e Nicoletta, e três maravilhosos netos. Carla casou cedo e teve
dois filhos, Alessandro de cinco anos e Luca de três, Giangio, Giangiacomo, o
filho de Nicoletta, também tem três. Primos gêmeos, costumava dizer. E foi...,
é, ..., será ainda um avô maravilhoso. E foi também um bom pai. E..., sou um
bom marido? Paola ergueu os olhos para o céu: ainda estamos aqui, não? Digamos
que em trinta anos de vida há altos e baixos. O senhor sempre foi considerado
bonitão... Esta manhã, ontem, faz dez anos, vi uma cara horrenda no espelho. Com
tudo o que lhe aconteceu, é o mínimo. Mas foi, ainda é um homem bonito, tem um
sorriso irresistível e algumas não resistiram. Nem o senhor, que dizia sempre
que se pode resistir a tudo menos às tentações. Peço desculpas. Veja só, como
os que lançavam mísseis inteligentes sobre Bagdad e depois se desculpavam
quando morriam alguns civis. Mísseis em Bagdad? Não está nas MU e urna noites.
Houve
uma guerra, a Guerra do Golfo, agora já acabou, ou não, talvez. O Iraque
invadiu o Kuwait, os estados ocidentais intervieram. Não lembra de nada? O
médico disse que a memória episódica, que parece que entrou em tilt, é
ligada às emoções. Talvez os mísseis sobre Bagdad tenham sido uma coisa que me
emocionou. E como! O senhor sempre foi um pacifista convicto e essa guerra o
deixou em crise. Quase duzentos anos atrás, Maine de Biran distinguia três
tipos de memória, ideias, sensações e hábitos. O senhor lembra de ideias e hábitos,
mas não de sensações, que no entanto são as coisas mais suas. Como é que sabe
de todas essas coisas? Sou psicóloga de profissão. Mas espere um momento: você
acabou de dizer que a sua memória episódica deu tilt. Por que usou essa
expressão? É assim que se diz». In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha
Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN
978-850-107-143-9.
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