sábado, 11 de fevereiro de 2017

Quando Nietzsche Chorou. Irvin D. Yalom. «Ali estava ela! A mulher descendo a Riva dei Carbon e adentrando o café. Somente ela poderia ter escrito aquela nota, aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casaco de peles…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O carrilhão de San Salvatore invadiu o devaneio de Josef Breuer. Puxou o pesado relógio de ouro do bolso do colete. Nove horas. Novamente, leu o pequeno cartão de borda prateada recebido no dia anterior: 21 de Outubro de 1882, doutor Breuer, preciso vê-lo para um assunto da maior urgência. O futuro da filosofia alemã está em jogo. Encontre-me amanhã cedo às nove horas no Café Sorrento. Lou Salomé.
Um bilhete impertinente! Havia anos ninguém o abordava com tanta sem-cerimónia. Ele não conhecia nenhuma Lou Salomé. Nenhum remetente no envelope. Nenhuma forma de informar a essa pessoa que nove horas era inconveniente, que a sra. Breuer não gostaria de tomar o café da manhã sozinha, que o Breuer estava de férias e que não estava interessado em assuntos urgentes, aliás, Breuer viera a Veneza precisamente para se livrar de assuntos urgentes. Não obstante, lá estava ele no Café Sorrento às nove horas em ponto, esquadrinhando os rostos ao seu redor e perguntando-se qual deles poderia ser a impertinente Lou Salomé. Outro café, senhor? Breuer anuiu com a cabeça para o empregado, um rapaz de treze ou quatorze anos e de cabelos pretos, lisos e húmidos, penteados para trás. Quanto tempo durara seu devaneio? Consultou novamente o relógio. Outros dez minutos de vida desperdiçados. E desperdiçados em quê? Como de hábito, devaneara sobre Bertha, a bela Bertha, sua paciente nos últimos dois anos. Estava recordando a sua voz provocante: doutor Breuer, porque tem tanto medo de mim? Lembrou as suas palavras quando lhe dissera que deixaria de ser seu médico: aguardarei. Você sempre será o único homem em minha vida. Ele se censurou: pelo amor de Deus, pare! Pare de pensar! Abra os olhos! Veja! Deixe o mundo entrar! Breuer ergueu a sua xícara, inalando o aroma do saboroso café, junto com profundas inspirações do frio ar veneziano do mês de Outubro. Volveu a cabeça e olhou ao redor. As outras mesas do Café Sorrento estavam repletas de homens e mulheres que faziam o desjejum, na maioria, turistas, e quase todos de meia-idade. Muitos seguravam o jornal com uma das mãos e a xícara de café com a outra. Para além das mesas, viam-se nuvens de pombos azul-cinza que esvoaçavam e mergulhavam. As águas paradas do Grand Canal, brilhando com os reflexos dos grandes palácios alinhados nas suas margens, eram perturbadas somente pela esteira ondulante de uma gôndola costeira. As outras embarcações ainda dormiam, amarradas em estacas tortas espalhadas aqui e ali ao longo do canal, qual lanças espetadas ao acaso por alguma mão gigante.
E isso mesmo: olhe ao redor, seu tolo! Breuer proferiu de si para consigo. As pessoas vêm do mundo inteiro para admirar Veneza; pessoas que se recusam a morrer sem serem abençoadas por esta beleza. Quanto da vida eu perdi, pensou-simplesmente por deixar de olhar? Ou por olhar e não ver? No dia anterior, fizera uma caminhada solitária pela ilha de Murano e, depois de uma hora, não vira nada, não registrará nada. Nenhuma imagem se transferira de sua retina para o córtex. Toda a sua atenção se consumira em pensamentos sobre Bertha: o sorriso encantador, os olhos adoráveis, a sensação de seu corpo quente e confiante e sua respiração acelerada quando ele a examinava ou massageava. Tais cenas tinham poder, uma vida própria; sempre que baixava a guarda, elas lhe invadiam a mente e usurpavam a sua imaginação. Será esta a minha sina para sempre?, se perguntou. Estarei destinado a ser um simples palco no qual as memórias de Bertha representam eternamente seu drama? Alguém se levantou na mesa ao lado. O ruído agudo da cadeira metálica contra o tijolo o despertou e, mais uma vez, ele procurou Lou Salomé. Ali estava ela! A mulher descendo a Riva dei Carbon e adentrando o café. Somente ela poderia ter escrito aquela nota, aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casaco de peles, marchando altivamente em direcção a ele, agora, através do emaranhado de mesas lotadas. Ao se aproximar, Breuer notou que ela era jovem, talvez até mais jovem do que Bertha, possivelmente uma colegial. Mas aquela presença impositiva, extraordinária! Poderia levá-la longe! Lou Salomé prosseguiu até ele sem demonstrar qualquer hesitação. Como poderia estar tão certa de sua pessoa? A mão esquerda de Breuer rapidamente golpeou as cerdas ruivas de sua barba para limpá-la das migalhas de pãozinho. Sua mão direita puxou a parte lateral da jaqueta preta que vestia para que não ficasse erguida em torno do pescoço. Ao chegar a poucos metros de distância, a jovem deteve-se por um instante e fitou-o ousadamente nos olhos. De súbito, a mente de Breuer cessou de tagarelar. Agora, olhar não exigia concentração. Agora, retina e córtex cooperavam perfeitamente, permitindo que a imagem de Lou Salomé penetrasse livre em sua mente. Era uma mulher de extraordinária beleza: testa altiva, queixo forte e bem esculpido, olhos azuis brilhantes, lábios cheios e sensuais, e seus cabelos louro-prateados, negligentemente penteados, se reuniam em um coque alto, expondo-lhe as orelhas e o pescoço longo e gracioso. Ele notou com especial prazer as mechas de cabelo que escapavam do coque e descaíam arrojadamente em todas as direções.
Mais três passos, e ela atingiu a sua mesa. Doutor Breuer, sou Lou Salomé. Posso?, perguntou, apontando a cadeira vazia. Sentou-se tão prontamente que Breuer não teve tempo de cumprimentá-la como devia: levantar-se, curvar-se, beijar-lhe as mãos e puxar a cadeira para ela. Garçom, garçom! Breuer estalou os dedos animadamente. Um café para a dama. Café com leite. Olhou em direcção à senhorita Salomé. Ela anuiu com a cabeça e, a despeito do frio matinal, tirou o casaco de peles. Sim, um café com leite. Breuer e sua companheira de café ficaram sentados em silêncio por um momento. Depois, Lou Salomé fitou-o directamente nos olhos e começou: tenho um amigo em desespero. Temo que venha a se matar num futuro muito próximo. Seria uma grande perda para mim e uma grande tragédia pessoal, pois eu carregaria certa responsabilidade». In Irvin D. Yalom, Quando Nietzsche Chorou, 1992, Editora Ediouro, 1995, Saída de Emergência, 2005, ISBN 978-972-883-935-2.

Cortesia de Ediouro/SdeEmergencia/JDACT