Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
carrilhão de San Salvatore invadiu o devaneio de Josef Breuer. Puxou o pesado relógio
de ouro do bolso do colete. Nove horas. Novamente, leu o pequeno cartão de
borda prateada recebido no dia anterior: 21 de Outubro de 1882, doutor
Breuer, preciso vê-lo para um assunto da maior urgência. O futuro da filosofia
alemã está em jogo. Encontre-me amanhã cedo às nove horas no Café Sorrento. Lou
Salomé.
Um
bilhete impertinente! Havia anos ninguém o abordava com tanta sem-cerimónia.
Ele não conhecia nenhuma Lou Salomé. Nenhum remetente no envelope. Nenhuma
forma de informar a essa pessoa que nove horas era inconveniente, que a sra.
Breuer não gostaria de tomar o café da manhã sozinha, que o Breuer estava de
férias e que não estava interessado em assuntos urgentes, aliás, Breuer
viera a Veneza precisamente para se livrar de assuntos urgentes. Não obstante,
lá estava ele no Café Sorrento às nove horas em ponto, esquadrinhando os rostos
ao seu redor e perguntando-se qual deles poderia ser a impertinente Lou Salomé.
Outro café, senhor? Breuer anuiu com a cabeça para o empregado, um rapaz de
treze ou quatorze anos e de cabelos pretos, lisos e húmidos, penteados para
trás. Quanto tempo durara seu devaneio? Consultou novamente o relógio. Outros
dez minutos de vida desperdiçados. E desperdiçados em quê? Como de hábito,
devaneara sobre Bertha, a bela Bertha, sua paciente nos últimos dois anos. Estava
recordando a sua voz provocante: doutor Breuer, porque tem tanto medo de mim? Lembrou
as suas palavras quando lhe dissera que deixaria de ser seu médico: aguardarei.
Você sempre será o único homem em minha vida. Ele se censurou: pelo amor de
Deus, pare! Pare de pensar! Abra os olhos! Veja! Deixe o mundo entrar! Breuer
ergueu a sua xícara, inalando o aroma do saboroso café, junto com profundas
inspirações do frio ar veneziano do mês de Outubro. Volveu a cabeça e olhou ao
redor. As outras mesas do Café Sorrento estavam repletas de homens e mulheres
que faziam o desjejum, na maioria, turistas, e quase todos de meia-idade.
Muitos seguravam o jornal com uma das mãos e a xícara de café com a outra. Para
além das mesas, viam-se nuvens de pombos azul-cinza que esvoaçavam e
mergulhavam. As águas paradas do Grand Canal, brilhando com os reflexos dos
grandes palácios alinhados nas suas margens, eram perturbadas somente pela
esteira ondulante de uma gôndola costeira. As outras embarcações ainda dormiam,
amarradas em estacas tortas espalhadas aqui e ali ao longo do canal, qual
lanças espetadas ao acaso por alguma mão gigante.
E
isso mesmo: olhe ao redor, seu tolo! Breuer proferiu de si para consigo. As
pessoas vêm do mundo inteiro para admirar Veneza; pessoas que se recusam a
morrer sem serem abençoadas por esta beleza. Quanto da vida eu perdi,
pensou-simplesmente por deixar de olhar? Ou por olhar e não ver? No dia
anterior, fizera uma caminhada solitária pela ilha de Murano e, depois de uma
hora, não vira nada, não registrará nada. Nenhuma imagem se transferira de sua
retina para o córtex. Toda a sua atenção se consumira em pensamentos sobre
Bertha: o sorriso encantador, os olhos adoráveis, a sensação de seu corpo
quente e confiante e sua respiração acelerada quando ele a examinava ou
massageava. Tais cenas tinham poder, uma vida própria; sempre que baixava a
guarda, elas lhe invadiam a mente e usurpavam a sua imaginação. Será esta a
minha sina para sempre?, se perguntou. Estarei destinado a ser um simples palco
no qual as memórias de Bertha representam eternamente seu drama? Alguém se
levantou na mesa ao lado. O ruído agudo da cadeira metálica contra o tijolo o despertou
e, mais uma vez, ele procurou Lou Salomé. Ali estava ela! A mulher descendo a
Riva dei Carbon e adentrando o café. Somente ela poderia ter escrito aquela
nota, aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casaco de peles, marchando
altivamente em direcção a ele, agora, através do emaranhado de mesas lotadas.
Ao se aproximar, Breuer notou que ela era jovem, talvez até mais jovem do que
Bertha, possivelmente uma colegial. Mas aquela presença impositiva,
extraordinária! Poderia levá-la longe! Lou Salomé prosseguiu até ele sem
demonstrar qualquer hesitação. Como poderia estar tão certa de sua pessoa? A
mão esquerda de Breuer rapidamente golpeou as cerdas ruivas de sua barba para
limpá-la das migalhas de pãozinho. Sua mão direita puxou a parte lateral da
jaqueta preta que vestia para que não ficasse erguida em torno do pescoço. Ao
chegar a poucos metros de distância, a jovem deteve-se por um instante e
fitou-o ousadamente nos olhos. De súbito, a mente de Breuer cessou de
tagarelar. Agora, olhar não exigia concentração. Agora, retina e córtex
cooperavam perfeitamente, permitindo que a imagem de Lou Salomé penetrasse livre
em sua mente. Era uma mulher de extraordinária beleza: testa altiva, queixo
forte e bem esculpido, olhos azuis brilhantes, lábios cheios e sensuais, e seus
cabelos louro-prateados, negligentemente penteados, se reuniam em um coque
alto, expondo-lhe as orelhas e o pescoço longo e gracioso. Ele notou com
especial prazer as mechas de cabelo que escapavam do coque e descaíam
arrojadamente em todas as direções.
Mais
três passos, e ela atingiu a sua mesa. Doutor Breuer, sou Lou Salomé. Posso?,
perguntou, apontando a cadeira vazia. Sentou-se tão prontamente que Breuer não
teve tempo de cumprimentá-la como devia: levantar-se, curvar-se, beijar-lhe as
mãos e puxar a cadeira para ela. Garçom, garçom! Breuer estalou os dedos
animadamente. Um café para a dama. Café com leite. Olhou em direcção à
senhorita Salomé. Ela anuiu com a cabeça e, a despeito do frio matinal, tirou o
casaco de peles. Sim, um café com leite. Breuer e sua companheira de café
ficaram sentados em silêncio por um momento. Depois, Lou Salomé fitou-o directamente
nos olhos e começou: tenho um amigo em desespero. Temo que venha a se matar num
futuro muito próximo. Seria uma grande perda para mim e uma grande tragédia
pessoal, pois eu carregaria certa responsabilidade». In Irvin D. Yalom, Quando
Nietzsche Chorou, 1992, Editora Ediouro, 1995, Saída de Emergência, 2005, ISBN 978-972-883-935-2.
Cortesia de
Ediouro/SdeEmergencia/JDACT