quarta-feira, 3 de maio de 2017

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «Recordemos que se tinha estabelecido, embora de forma mais implícita do que expressa, que se tratava de um texto não muito anterior aos anos 40 do século XIV, perpetuado por iniciativa do conde Pedro de Barcelos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A recente obra de Filipe Alves Moreira intitulada Afonso Henriques e a Primeira Crónica Portuguesa contém, em relação com uma matéria muito visitada (mais do que estudada ou investigada), algumas novidades que me parece deverem ser, por um lado, sublinhadas devido à sua importância histórica, e, por outro, aprofundadas em virtude do seu carácter inseguro, ou mesmo, a meu ver, discutível ou ambivalente. Ambos os aspectos merecem ser examinados porque os problemas implicados em cada um destes pontos de vista revestem uma certa importância histórica. Verifica-se aqui como o exame atento de certos pormenores aparentemente insignificantes de um texto pode alterar decisivamente o conhecimento que temos acerca de questões mais vastas. O texto a que o autor chama Primeira Crónica Portuguesa, cuja principal versão é a IV Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra será, com efeito, propõe o autor, a primeira obra em prosa de conteúdo histórico escrita em português.
Evocando investigações bastante conhecidas, recordemos que a IV Crónica Breve foi considerada por Lindley Cintra como um texto dependente da chamada Crónica de Veinte Reyes e como fonte da matéria correspondente do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e da Crónica Geral de Espanha de 1344, do mesmo autor. Por seu lado, António José Saraiva, além de aderir à tese de Cintra, apresentava a hipótese, depois largamente recebida, tanto em obras de divulgação como em obras especializadas, de a narrativa do conflito entre Afonso Henriques e o legado apostólico (conhecida também pela versão dramatizada de Alexandre Herculano, com o título de O Bispo Negro), transmitida tanto pela Crónica dos Veinte Reyes como pela IV Crónica Breve, se poder considerar como uma versão prosificada de um antigo cantar de gesta português. Apresentava como prova alguns passos onde julgava ainda ver marcas da antiga versão oral. Desenvolvia, assim, a opinião de Cintra, que tentava descobrir nas narrativas recolhidas pelos cronistas do século XIV vestígios de uma forma épica. O texto de que a IV Crónica Breve seria o melhor testemunho teria o excepcional valor de preservar os restos de uma narrativa inspirada pelas gestas castelhanas e remontaria ao princípio do século XIII.
Em terceiro lugar, Diego Catalán Pidal, embora tenha confirmado a relação estabelecida por Cintra entre a IV Crónica Breve e as duas obras do Conde D. Pedro, o Livro de Linhagens e a Crónica Geral de Espanha de 1344, provou, sem grande margem para dúvidas, que ela não deriva da dos Veinte Reyes, mas constitui uma versão de uma fonte comum a ambas, hoje perdida, a que chamou Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal. Além disso, reconstituiu alguns dos seus elementos primitivos baseando-se no testemunho indirecto fornecido pelas Chronicas de Acenheiro. Resumindo assim, muito brevemente, uma questão histórica efectivamente importante, e para a qual se usou até aos anos 80 do século passado, uma enorme bateria de argumentos inspirados pela crítica textual e pela crítica interna, pode-se perceber, apesar das evidentes incógnitas, que está em causa não só o nosso primeiro texto português de conteúdo histórico escrito depois dos velhos anais latinos de origem clerical, os Annales Portucalenses Veteres e outros do mesmo género, mas também o primeiro de todos os escritos em prosa da nossa língua. Embora em ambos os casos os textos sejam curtos, não podemos ignorar a distância que separa os dois géneros em que se incluem as primeiras produções historiográficas portuguesas: de um lado, a lista sincopada, escrita em latim, de acontecimentos datados, típica dos «anais»; de outro, a narrativa sequencial, em português, dos feitos de um ou mais reis como chefes de uma nação, própria da crónica. A importância do facto contrasta, porém, não se deve esquecer, com a brevidade dos textos. Mereceriam tão grande investimento de recursos analíticos se não se tratasse de fontes primordiais?
Ora a descoberta, na década de 80, de um novo manuscrito da célebre Estoria de España de Afonso X permitiu a Inês Fernández Ordoñez demonstrar que a Crónica de Veinte Reyes não era, como até então se julgava, uma crónica autónoma, mas uma parte da chamada versão crítica da mesma Estoria, seguramente redigida sob orientação do próprio Afonso X, entre 1282 e 1284. Este facto repercutiu-se sobre a datação do texto perdido intitulado por Diego Catalán Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal, cuja principal versão é, como vimos, a IV Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra.
Pertence a Filipe Moreira o mérito de ter percebido rapidamente as suas implicações. Recordemos que se tinha estabelecido, embora de forma mais implícita do que expressa, que se tratava de um texto não muito anterior aos anos 40 do século XIV, perpetuado por iniciativa do conde Pedro de Barcelos graças à sua recolha dos materiais que utilizou para redigir o Livro de Linhagens e a Crónica Geral de Espanha de 1344. Ora, o facto de ter constituído obra autónoma e anterior à Crónica de Veinte Reyes, escrita antes de 1282-1284, obriga a recuar a data da sua composição para uns sessenta anos mais cedo. Filipe Moreira soube tirar partido destes dados. Vejamos, pois, os elementos essenciais da sua tese». In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT