quarta-feira, 31 de maio de 2017

O Século XVI no 31. O Anatomista Federico. Andahazi. «Com algum exagero, chegou-se a dizer que no século XVI foi travada a Batalha dos sexos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Século das Mulheres
«O século XVI foi o século das mulheres. A semente que Christine Pisan semeara cem anos antes florescia por toda a Europa com o doce perfume de O ditado dos verdadeiros amantes. Não foi de modo algum casual que o descobrimento de Mateo Colombo tenha eclodido no tempo e no espaço em que se deu. Até ao século XVI, a História era narrada pela grave voz masculina. Onde quer que se olhe, lá está ela com a sua infinita presença: do século XVI ao XVIII, na cena doméstica, económica, intelectual, pública, conflitual e até mesmo lúdica da sociedade, encontramos a mulher. Em geral, solicitada pelas suas tarefas quotidianas. Mas também presente nos acontecimentos que constituem, transformam ou dilaceram a sociedade. De cima a baixo da escala social, ela ocupa o conjunto dos espaços, e sobre a sua presença falam constantemente aqueles que a contemplam, amiúde para assustar-se, declaram Natalie Zemón e Arlette Farge em História das mulheres. O descobrimento de Mateo Colombo surge, precisamente, quando os âmbitos das mulheres, sempre da porta para dentro, começam, pouco a pouco e subtilmente, a sair dos muros dos beatérios e dos mosteiros, dos prostíbulos ou da tépida, mas não menos monástica, doçura do lar. A mulher, timidamente, atreve-se a discutir com o homem. Com algum exagero, chegou-se a dizer que no século XVI foi travada a Batalha dos sexos. Verdade ou não, a questão das incumbências das mulheres instala-se como um tema de discussão entre os homens.
Em tais circunstâncias, o que era a América de Mateo Colombo? Certamente, o limite entre a descoberta e a invenção é muito mais difuso do que parece à primeira vista. Mateo Colombo, é hora de dizer, descobriu aquilo com que todo homem sonhou alguma vez: a chave mágica que abre o coração das mulheres, o segredo que governa a misteriosa vontade do amor feminino. Aquilo que, desde o começo da História, foi buscado por bruxos e feiticeiras, xamãs e alquimistas, mediante a infusão de toda sorte de ervas ou o favor de deuses e demônios, aquilo, enfim, que todo homem apaixonado sempre ansiou, ferido pelo desamor do objecto de seus desvelos e de sua desdita. E também, aliás, aquilo com que monarcas e governantes sonharam, pela mera ambição da omnipotência: o instrumento que subjugasse a volátil vontade feminina. Mateo Colombo buscou, peregrinou e, finalmente, encontrou a sua doce terra desejada: o órgão que governa o amor nas mulheres. O Amor Veneris tal é o nome com que o anatomista o baptizou, se me é permissível dar nomes às coisas por mim descobertas, constituía um verdadeiro instrumento de potestade sobre o escorregadio, e sempre obscuro, arbítrio feminino. Por certo, tal achado apresentava mais de uma aresta: com que calamidades a cristandade não se veria confrontada se as hostes do demónio se apoderassem do feminino objecto do pecado?, perguntavam-se, escandalizados, os Doutores da Igreja. O que seria do rentável negócio da prostituição se qualquer pobre entrevado pudesse ganhar o amor da mais cara das cortesãs?, perguntavam-se os ricos proprietários dos esplêndidos lupanares de Veneza. Ou, ainda pior, o que aconteceria se as filhas de Eva descobrissem que trazem no meio das pernas as chaves do céu e do inferno?
O descobrimento da América de Mateo Colombo foi também, e na sua medida, uma épica, cortada pela ladainha de um réquiem. Mateo Colombo foi tão feroz e impiedoso quanto Cristóvão; como aquele, e com a mesma literal propriedade, foi um colonizador brutal que reclamava para si mesmo o direito sobre as terras descobertas: o corpo da mulher. Por outro lado, porém, para além do que significava o Amor Veneris, outra polémica seria suscitada pelo que era esse órgão. Existirá o órgão que Mateo Colombo descreveu? Essa é uma pergunta inútil que deveria, em todo caso, ser substituída por outra: existiu o Amor Veneris? As coisas são, ao fim e ao cabo, as vozes que as nomeiam. Amor Veneris, vel Dulcedo Apelete, nome com que o seu descobridor baptizou o órgão, tinha um conteúdo fortemente herético. Se o Amor Veneris coincide com o menos apóstata e mais neutro kleitoris (comichão), que alude a efeitos antes que a causas—, é um assunto que haverá de preocupar os historiadores do corpo. O Amor Veneris existiu por razões diferentes das razões da anatomia; existiu não só porque fundou uma nova mulher, mas porque, além disso, promoveu uma tragédia. O que vem a seguir é a história de um descobrimento». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,  ISBN 978-972-232-362-8.

Cortesia de EPresença/JDACT