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Nessa mesma noite, a festa prolongou-se no beco de San Miguel. Como se fosse uma
competição, cada uma das famílias de ferreiros empenhou-se em demonstrar os seus
dotes a dançar e a cantar, a tocar guitarra, castanholas ou pandeiretas. Fizeram-no
os Garcías, os Camachos, os Flores, os Reyes, os Carmonas, os Vargas e muitos mais
dos vinte e um apelidos que habitavam o beco. Romances, sarabandas, chaconas, xácaras,
fandangos, seguidilhas ou sarambeques, todos se ouviram e se dançaram à 1uz de uma
fogueira alimentada pelas mulheres à medida que as horas passavam. À volta do fogo,
sentados na primeira fila, estavam os ciganos que compunham o conselho de anciãos,
encabeçados por Rafael García. um homem que teria cerca de sessenta anos, enxuto,
sério e seco. a quem chamavam conde.
O vinho
e o tabaco não faltaram. As mulheres contribuíram com alimentos que tinham levado
de casa: pão, queijo, sardinhas e camarões, frango e lebre, avelãs, bolotas, marmelada
e fruta. As festas eram um local de partilha; quando se cantava e dançava esqueciam-se
as desavenças e as inimizades atávicas, e lá estavam os anciãos para o garantir.
Os ciganos ferreiros de Triana não eram ricos. Continuavam a pertencer a esse povo
que desde a época dos Reis Católicos sofria perseguições em Espanha: não podiam
vestir as suas coloridas vestimentas nem falar a sua gíria, contrabandear, ler a
sina ou comerciar com cavalgaduras. Estavam proibidos de cantar e dançar, nem sequer
tinham autorização para viver em Triana ou trabalhar como ferreiros. Em várias
ocasiões, os grémios gadjé de ferreiros sevilhanos tinham tentado que os
impedissem de trabalhar nas suas forjas rudimentares, e as pragmáticas reais e as
ordens tinham insistido nisso, mas em vão: os ferreiros ciganos garantiam o
fornecimento de milhares de ferraduras imprescindíveis para as cavalgaduras que
trabalhavam os campos do reino de Sevilha, por isso, continuaram a e fabricar e
a vender os seus produtos aos mesmos ferreiros gadjé que pretendiam
acabar com as suas actividades, mas que não podiam enfrentar a enorme procura.
Enquanto
as crianças, quase nuas, tentavam emular os seus progenitores no fundo do beco,
Ana e Milagros começaram uma alegre sarabanda com dois parentes da família de José,
os Carmonas. Mãe e filha, uma ao lado da outra, a sorrir quando os seus olhares
se cruzavam, faziam movimentos bruscos com a cintura e brincavam
com a sensualidade do corpo ao som da guitarra e do canto. José, como tantos
outros, olhava, acompanhava com palmas e animava-as. Em cada movimento de dança,
como se de um desafio se tratasse, as mulheres incitavam os homens,
provocavam-nos com os olhos propondo-lhes um romance impossível. Aproximavam- se
e afastavam se, e giravam à sua volta ao ritmo impudico das ancas, ostentando os
seios, exuberantes os da mãe, jovens os da filha. As duas dançavam direitas, levantando
os braços sobre a cabeça ou agitando-os para os lados; os lenços que Milagros levava
atados aos pulsos ganhavam vida no ar». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça,
2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa,
2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia BertrandE/JDACT