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«Houve tempo em que a velha catedral conimbricense,
hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras,
ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do
Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de
luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta
guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma
inteligência que as perceba. Então aquelas ameias e torres não haviam sido
tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado
sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram
da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes. Mas, quer filha dos
valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua
singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora
ouvireis contar.
Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe
de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o
poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo
de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as
tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar
grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a tradição
verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.
Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra,
assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o
príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios
e apurava traças para guerrear a mourisma. E lançou casualmente os olhos para o
caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo Bernardo, que, montado em sua nédia
mula, cavalgava apressado pela encosta acima. Vedes vós, disse ele ao Espadeiro,
o nosso leal Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o
faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à
sala de armas e vejamos o que ele quer. E desceram.
Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do
alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos
arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos
feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por
base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e
pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento.
Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para
outro lado.
Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra,
abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre.
Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e
solene do bispo Bernardo. Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio
vos traz aqui esta noute?, disse o príncipe ao bispo Bernardo. Más novas,.
senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi. E que quer de vós
o papa? Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe... Nem pelo papa, nem por
ninguém o farei.
E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes
cumprir seu mandado. E vós que intentais fazer? Obedecer ao sucessor de São
Pedro. Quê? don Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical;
aquele que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso
príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das
opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só
minha e dos cavaleiros portugueses? Tudo vos devo, senhor, atalhou o bispo,
salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a
minha obediência, que guardarei ao papa». In Alexandre Herculano. O Bispo Negro (1130)
e Arras por Foro de Espanha, 1851, Livraria Bertrand, Editorial Verbo, Biblioteca
Básica Verbo, 1971.
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