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«(…) Houve um alarido tremendo na
costa e nas águas. A gentiaga acorreu à beira-mar e alguns mais afoitos foram de
almadias até às novas embarcações, uns por curiosidade, outros mais arrojados a
tentar escambo com os estranhos que pareciam de bolsa farta. Mas aqueles homens
de além-mar tinham carrancas barbudas que davam mostras de pouca amizade. Só
uns tantos saíram a terra. Degredados de pouca valia, gente ruim por quem
ninguém verteria uma lágrima e outros tantos homens de armas. Saiu também Fernão
Martins, que era o língua da armada, um homem de muitos falares. Ficaram
deslumbrados com aquele estranho povo, uns escanzelados de barbas brancas e poucas
vestes, outros anafados e de bons panos coloridos. Gente muito variada e muitos
animais exóticos. Pelos adentros das narinas entrava um cheiro adocicado que indicava
as praças de mercadores de especiarias. Os portugueses sorriram, mas por pouco tempo,
pois a mourama era belicosa e as escaramuças aumentavam a olhos vistos. Depois
de muito cruzar lâminas e injúrias, Fernão Martins lá encontrou um árabe que era
mais senhor de falas que de espadas. E arabiando os dois, lá se entenderam e
assim convenceram o dito a subir a bordo para falar com o capitão-mor. Sou Vasco
da Gama, dizei ao samorim que quero falar-lhe. Trago uma missiva do meu rei e
senhor, Manuel I, rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d’Além-Mar em Africa.
Moçaide, o árabe, era homem
viajado. Tinha navegado no Mediterrâneo e conhecia a fama dos portugueses. No seu
arengar meio-genovês, meio-castelhano, agradeceu as mordomias recebidas e prometeu
ser célere em marcar audiência com o soberano daquelas terras. Mas o sultão era
homem acautelado e, não sabendo dos intuitos daqueles forasteiros, tinha pegado
no seu séquito e partido para um outro palácio, lá no anteparo da floresta, distante
dos mares e do poder de fogo de tal gente. Por isso demorou tempo a resposta do
soberano e muito tardou também a viagem dos portugueses pelo matagal adentro, sob
um sol que matava e uma humidade que fazia gotejar os corpos; as fatiotas tiradas
da arca húmida para tão especial ocasião estavam já encharcadas de um suor fétido.
Os portugueses seguiram transportados em liteiras, mas sempre nervosos e desconfiados
dos beberes e das poucas comidas que lhes eram dados. Só quando chegaram ao seu
destino tudo esqueceram e abriram a boca num espanto sem fim, tinham chegado à terra
dos seus devaneios. Por certo, nem em sonhos tinham estado num tão luxurioso lugar.
Todo o palácio era uma ilha de tesouros,
nunca os portugueses tinham visto tal coisa: o debuxo ornamentado do edifício; os
adornos de pedraria; o sem-fim de guerreiros e serviçais; um ror de gente coberta
de sedas e pedras preciosas. Caminharam pelo palácio adentro em passo firme, orgulhosos,
mas os presentes torciam o rosto e levavam lenços ao nariz. Uns serviçais foram
borrifá-los com uns líquidos. Água benta por certo, devem ser cristãos,
comentou Gama, escarrando no chão. Mas na realidade era perfume, pois o odor a esterco
e suor estava-lhes apegado ao corpo. Por contraste, o samorim Manavikraman Rajá,
homem de muitos anos, estava estirado num dossel bordado a ouro e reclinado em grande
soma de almofadas cor de pérola. Convidou Gama a sentar-se e brindou a comitiva
com fruta e beberagens frescas. Gama discorreu então sobre o reino de Portugal e
seus egrégios antepassados, o seu poderio militar e económico, o seu agigantar nas
aventuras do mar tenebroso. Fazia questão que das suas palavras emergisse a
grandeza impressionante de um reino que a todos desse o mesmo pensar, melhor o ter
por afeiçoado que por desavindo. O samorim ouvia a tradução das línguas mas não
largava o lenço aromatizado sobre o nariz; desesperava com tal gente e mostrava
cara de enfado. À sua volta todos franziam igualmente o sobrolho, pouco crentes
na grandiosidade de um reino que se fazia representar por um barbudo porco e nauseabundo.
Vasco
da Gama sentia que o ambiente lhe era adverso, por isso lhe tremiam os termos e
as ideias, o que maior desagrado causava entre os presentes,- não dizia iá coisa
com coisa. Aquela era gente perfumada, de corpo depilado e pele tratada, carregada
de jóias e sedas coloridas. Em toda a volta tudo era primor e riqueza, deslumbre
e opulência. Só aquela gente que escarrava no chão parecia saída da imundície. Por
isso lhe pediam que falasse com as mãos sobre a boca, para que o hálito não emporcasse
mais ainda aquele ambiente luzidio.
Vasco
da Gama sentia que tudo revoluteava à sua volta, como se estivesse ainda no cabo
tormentoso onde a morte tinha chamado por ele. E se a água o não tinha tragado,
sentia agora que este povinho efeminado e senhoril o queria esmagar com uma vaga
de desprezo. Temeu então que se perdesse o encargo que o rei Manuel I lhe confiara.
Não posso malograr esta missão, repetia de si para si mesmo. O futuro do reino está
nas minhas mãos, não posso falhar». In João Morgado, Vera Cruz, Clube do
Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.
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