domingo, 21 de maio de 2017

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «Mas Clifford, apesar demais educado e de melhor sociedade do que Connie, era à sua maneira mais provinciano e mais tímido»

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«(…) Era óbvio, olhando para eles. que conheciam o amor, isto é. Tinham tido a experiência física. É curiosa a subtil mas inequívoca transmutação que ela provoca no corpo quer dos homens quer das mulheres: a mulher floresce, as suas formas ficam mais arredondadas, as formas angulosas atenuam-se, e a expressão torna-se ora ansiosa ora triunfante; o homem torna-se mais calmo, mais interiorizado, e o contorno dos ombros e das nádegas menos acentuado, mais hesitante. Com a emoção corporal, as duas irmãs quase sucumbiram ao poder estranho do macho. Mas rapidamente se recompuseram, encararam e emoção sexual como uma sensação e continuaram livres. Os homens, gratos às mulheres pela experiência física, deram-lhes um pouco da sua alma. Depois, pareciam por vezes mais uma pessoa que perde dez tostões e encontra cinco. O jovem de Connie tinha mau feitio e o de Hilda era trocista. Mas os homens são assim! Ingratos e sempre insatisfeitos; se não são aceites, odeiam a mulher por não os aceitar, se o são, odeiam-na por qualquer outra razão, ou nenhuma razão, porque são crianças descontentes e nada os satisfaz por mais que a mulher faça.
Todavia, a guerra rebentou e Connie e Hilda regressaram apressadamente a Inglaterra, depois de também aí terem passado o mês de Maio, quando do funeral da mãe. Antes do Natal de 1914 os dois jovens já estavam mortos, e as irmãs choraram-nos e amaram-nos apaixonadamente; mas no fundo já os tinham esquecido, eles já não existiam. Viviam então na casa do pai, ou melhor, da mãe. em Kensington. Davam-se com um jovem grupo de Cambridge, que defendia a liberdade e as calças, camisas de flanela abertas no pescoço, e uma espécie de anarquia saudável. Tinham uma voz murmurante de quem falava baixo. e eram ultra-sensíveis. Hilda, porém, casou de súbito com um homem dez anos mais velho, dos mais velhos desse grupo de Cambridge, um homem com bastante dinheiro e com um bom cargo oficial, que também escrevia ensaios filosóficos. Foi viver com ele para uma pequena casa em Westminster, e passou a frequentar aquele tipo de sociedade do meio governamental que não é exactamente o pináculo, mas que constitui, ou, pelo menos, deveria constituir, o poder realmente inteligente da nação: pessoas que sabem do que falam, ou falam como se assim fosse.
Connie teve um emprego de guerra e ligou-se aos intransigentes, de calças de flanela do grupo de Cambridge, que subtilmente troçavam de tudo. O seu amigo era Clifford Chatterley, um jovem de vinte e dois anos, que regressara apressadamente de Bona, onde estudava as técnicas da exploração mineira do carvão. Antes estivera em Cambridge dois anos e agora era primeiro-tenente num regimento de escol. Assim podia escarnecer de tudo, mais elegantemente no seu uniforme. Clifford Chatterley era da melhor sociedade que Connie. Esta pertencia à intelectualidade próspera, mas ele era da aristocracia, não da alta, mas da aristocracia, de qualquer modo. O pai era baronete e a mãe filha de um visconde.
Mas Clifford, apesar demais educado e de melhor sociedade do que Connie, era à sua maneira mais provinciano e mais tímido. Sentia-se à vontade no seu pequeno grande mundo, isto é, entre a aristocracia da terra, mas tímido e nervoso perante esse outro grande mundo que consiste nas hordas das classes média e baixa e dos estrangeiros. Para dizer a verdade, ele tinha um pouco de receio da humanidade da classe média e baixa e dos estrangeiros que não pertenciam à sua classe. Estava consciente da sua impossibilidade de defesa, embora possuísse a defesa do privilégio. É curioso, mas é um fenómeno do nosso tempo. Assim, a suave autoconfiança de uma rapariga como Constance Reid fascinava-o. Ela era muito mais senhora de si mesma naquele mundo caótico do que ele.
Todavia, também ele era um rebelde, rebelando-se até contra a sua classe. Rebelde talvez seja uma palavra forte demais. Ele apenas partilhava da aversão geral e popular dos jovens às convenções e a qualquer tipo de verdadeira autoridade. Os pais eram ridículos, o seu ainda mais por ser obstinado. E os governos eram ridículos, e o nosso principalmente por manter uma atitude de expectativa. E os exércitos eram ridículos, assim como os antiquados generais, o mais importante de todos o corado Kjtchner. Até a guerra era ridícula, embora matasse muita gente. De facto, tudo era um pouco ridículo, ou muito ridículo: tudo aquilo relacionado com autoridade, quer fosse no exército, no governo ou nas universidades, era muitíssimo ridículo. E, na medida em que as classes dirigentes tinham pretensões de governar, eram também ridículas. O pai de Clifford, sir Geoffrey, era bastante ridículo a deitar abaixo as árvores e a expulsar os homens da mina de carvão para os mandar para a guerra, sendo ele tão prudente e patriota, e ao mesmo tempo gastando mais dinheiro do que possuía para bem da pátria.
Quando miss Chatterley chegou a Londres, vinda dos Midlands, para trabalhar como enfermeira, era discretamente muito espirituosa quando falava de sir Geoffrey e do seu patriotismo decidido. Herbert, o irmão mais velho e herdeiro, ria abertamente, embora fossem as suas árvores que caíssem para fazer as trincheiras da propriedade, mas Clifford só sorria, um pouco constrangido. De facto, tudo é ridículo, mas quando nos começa a tocar de mais perto tornamo-nos também ridículos... Pelo menos, pessoas de outra classe, como Connie, eram honestas em alguma coisa, acreditavam em alguma coisa». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.

Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT