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O
corsário de Malabar
«(…)
Cala a boca, barregã, grita-lhe o pirata, erguendo um chicote, ou inda t’arrependes!
Recolhidos os cofres e bolsas dos seus esconderijos, vêm depô-los, abertos, aos
pés de Timoja. Os olhos dos corsários brilham de cobiça, ao verem ouro e
pedraria de grande valor. Nada mau!, diz Marakkar, tomando a bolsa da mulher
mais velha. As jóias de uma matrona como tu devem valer uma boa maquia. Despeja-a
na mão e abre os olhos fingindo espanto pela pouca valia do conteúdo. Estás a mangar
comigo, velha bruxa? É tudo o que trazes? Já viste que temos meios mágicos para
fazer aparecer tesouros escondidos...
Sou
uma pobre mulher, maldito assassino, guincha a visada, cuja raiva lhe faz
esquecer o medo, casada com um modesto mercador e não com um ladrão, como tu! O
rosto desfigurado do lugar-tenente arreganha-se numa máscara de zombaria. Os
mercadores pobres não costumam ter dinheiro para viajar. Quem é o teu marido? Um
homem de aspecto insignificante ergue o braço a medo, sem falar, o que parece
enfurecer ainda mais a esposa, que gesticula como se lhe quisesse bater.
Maltratam-me
e tu não dizes nada, meu capado? Em má hora me casei contigo, cobarde, que lhes
deste a tua bolsa sem luta. Os corsários riem e o homem cora e suplica. Dá-lhes
o dinheiro, mulher, se o tens! Vais fazer com que nos matem! Dinheiro?! Onde
vou eu buscar dinheiro, eunuco avarento, com a miséria que me dás? É curaçuda,
a dona! Já vi quem manda na tua casa..., eunuco! E Marakkar ordena à mulher: tira
o manto e mostra-me as tuas jóias.
Num
salto a matrona lança-se sobre o corsário e crava-lhe as unhas na cara. Pu… maldita,
que dou cabo de ti! Timoja puxa a prisioneira para si, antes que o
lugar-tenente cumpra a ameaça e empurra-a para o meio dos homens, dizendo: passai-lhe
revista, que a cabra velha tem recheio. Os corsários agarram na mulher, a
debater-se como possessa, e começam a despi-la, numa folia de chistes e
gargalhadas.
Eia,
mulher bravia! És digna de um corsário!, diz um macatrefe, arrancando-lhe o
manto e o beskir. Que Allah vos faça padecer mil mortes, cornudos! Filhos de pu…!
Eh, Aliga, esta bruxa pragueja mais feio do que tu! Não te queres deitar com
ela? Inda tem um bom cusapeirão! O desdentado pirata visado pelos chistes faz
gestos obscenos e os risos redobram. Perros infiéis! Filhos de cadelas
leprosas! Mer…! A rameira morde como uma loba! O corsário, com a mão a sangrar,
dá-lhe duas bofetadas, deitando-a ao chão e usa o beskir como mordaça para a
impedir de morder e de cuspir. Arrancam-lhe a cabaia e a camisa, soltando um
grito de triunfo para Timoja: tinhas razão! Aqui está o recheio da chibarra!
Presa
ao corpete e às calças largas, as últimas peças de roupa, comprimida entre
roscas de carne, vê-se uma bolsa volumosa. O marido já não parece humilhado
ou indignado pelo tratamento infligido à esposa, mirando com pasmo o saquitel
preso no corpo. Pelos vistos a zoupeira ia-te aos bolsos e ainda ousa
chamar-nos ladrões! Arrancam-lhe a bolsa com muito custo, porquanto alguns
pontapés e murros desferidos com fúria acertam nos alvos, fazendo os piratas gemer
e devolver as pancadas. Belo pé-de-meia, o da tua consorte, amigo, continua
Marakkar, mostrando-lhe as moedas de prata e ouro. Que lhe fazemos? A marafona
é pior que um tigre com crias! Deixai o marido decidir! Queres ficar viúvo?,
pergunta-lhe Marakkar, com voz doce. Um fulgor perpassa nos olhos do homem, que
hesita, como se fosse falar, porém, baixa a cabeça com uma negação resignada». Deana
Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do
Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.
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Ésquilo/JDACT