«(…) Querendo
ver tudo e, atrás de um túmulo, com habilidades de contorcionista tornando (…) e
debruçando-se sobre a tampa do sepulcro para ser possuída… Helène aos gritos,
os dedos cravados nas pregas de pedra de um manto real qualquer, descontrolada.
O sacristão, velho e quase surdo, passando por ali e olhando espantado para a aflição
daquela moça tão nova. Um antepassado, disse Villeclaire. Está muito
comovida... Helène, a louca! Vem!, disse Louis abrindo os olhos, na urgência
que as recordações de Helène lhe tinham deixado no corpo.
Monsieur, o conde
de Joubert..., repetiu Cléa, e parecia uma menina, pálida, assustada, o pequeno
corpo tremendo. Está lá em baixo, ferido, matou um homem... Villeclaire
despertou imediatamente do torpor em que a noite com Cléa e as recordações de várias
outras noites, muito antes de Cléa, o tinham deixado e saltou da cama, nu.
Bertrand de Joubert não era exactamente um amigo e, apesar do título de conde,
também não era um verdadeiro cavaleiro, mas era um velho conhecido, um vizinho
cujo castelo no Vale do Loire ficava muito próximo do enorme palácio que Louis
tinha herdado naquela mesma região. Vestiu-se às pressas, amaldiçoando as inúmeras
peças de roupa que um homem elegante era obrigado a usar, e saiu do quarto,
ainda atando a fita de seda com que prendia o cabelo, seguido por Cléa, pobre
Cléa, em pânico.
Louis de
Villeclaire foi um dos últimos clientes de madame Martine a entrar no enorme
salão onde os grandes espelhos de molduras douradas reverberavam à luz das
centenas de velas que ardiam, envolvendo o ambiente num cálido odor de cera e
almíscar. As paredes, ricamente forradas de damasco azul, eram testemunhas
mudas das muitas conversas ali mantidas ao longo dos anos. Negócios de Estado,
vendas de bancos, nomeações de diplomatas, substituições de ministros, até o início
da guerra na Crimeia, dizia-se, tinham sido decididas naquela sala onde Martine
recebia os seus selectos clientes e onde, enquanto estes bebiam champanhe e
fumavam longos charutos perfumados, as belas moças que trabalhavam em sua casa
exibiam as suas formas esculturais dançando ou, simplesmente, conversando em
pequenos grupos.
Mas não era nada
disso que se passava naquela noite quando Louis desceu do quarto de Cléa e
entrou no salão. Bertrand de Joubert jazia num dos canapés forrados de seda
azul celeste, e o doutor Moreau, o mais famoso dos médicos de Paris, acabava de
lhe colocar uma ligadura no braço direito. Havia na sala uma agitação desusada.
Os risinhos das moças tinham sido substituídos por sussurros. Homens
circunspectos conversavam em voz baixa. E Martine, mantendo o seu porte de
rainha crioula, segurava a mão de Joubert. Vamos, onde se meteu? Por pouco não
subi para arrombar a porta do quarto de Cléa. Pierre Forchemont puxava o amigo,
a caminho da saída. O que é que aconteceu?, queria saber Villeclaire. Conto-lhe
quando estivermos a salvo dentro da minha carruagem. A polícia não tarda a
aparecer... E os outros? Marcel, Laurent, Gas... O marquês de Fochemont nem lhe
deu tempo para acabar a frase: estão à nossa espera no Gascogne, com ostras e
champanhe. Conto-lhe no caminho.
A carruagem que já
os esperava na porta atravessou a Rue Saint-Honoré e, logo depois, os cavalos
trotavam ao longo da Rue de Rivoli finda a qual depositaria os passageiros
junto das magníficas arcadas da Place de Vosges, onde ficava o Gascogne,
restaurante frequentado pela alta sociedade parisiense e com fama de ter as
melhores ostras da França. Chovia torrencialmente e as grossas gotas de chuva
batiam na capota da carruagem fazendo um barulho ensurdecedor, ainda piorado
pelo som das ferraduras dos quatro possantes cavalos. Era impossível conversar,
fazer perguntas. Por isso, Louis de Villeclaire limitou-se a ouvir o que o seu
amigo Pierre de Fochemont contava, aos gritos e entre gargalhadas: uma aposta
estúpida! Entre o Joubert e o Duvernois, o velho tabelião da Rue des
Archives... Nem entendi bem! Uma confusão qualquer aos dados que acabou numa
aposta sobre qual deles era mais rápido disparando uma pistola...
Villeclaire soltou uma gargalhada: dois apostadores inveterados
e dois péssimos atiradores! Mas, pelo visto, ambos com a mesma velocidade no
gatilho, disse Fochemont. O Joubert foi atingido num braço e a ironia é que,
apesar de mau atirador, desta vez acertou no alvo. Matou o Duvernois... Matou? Villeclaire
já não ria. Matou, respondeu Fochemont no momento em que a carruagem parava em
frente à porta do restaurante. Saíram correndo para chegarem ao abrigo das
arcadas antes que a chuva os deixasse encharcados. Onde foi isso? Marcaram
encontro para esta noite, no Bois de Bologne. No Bois?, ainda perguntou Louis. No
Bois, meu caro! Se é isso que quer saber, trouxeram o Joubert para a casa da
Martine porque calcularam que o bom do Moreau lá estaria. Às três da manhã era
a melhor maneira de lhe arranjarem rapidamente um médico, Pierre ainda disse, cínico,
antes de empurrar a porta de madeira e vidro». In Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011,
Editor Livros d’Hoje, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.
Cortesia de Ld’Hoje/JDACT