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«(…) Aqueles olhos não falavam de outra coisa.
Era corno se o quisessem proteger, envolver numa aura de paz. Fixou-os sem ceder
à comoção, invadido pelo remorso por todas as vidas que havia destruído. Depois,
recuou um passo, em direcção ao arco do portal, e o encanto desvaneceu-se. Estava
novamente sozinho, diante de um enorme mistério. Já percorrera metade da escadaria
exterior quando viu um homem de armas correr na sua direcção para lhe oferecer ajuda.
Maynard recusou com modos bruscos e depois tentou desculpar-se. Reconheceu
então um rosto amigo. Robert de Vermandois, disse, que prazer voltar a ver-vos são
e salvo.
Eu também, Rocheblanche. Moreno e
de estatura hercúlea, Robert de Vermandois era um barão da Picardia caído em desgraça,
mas movido por uma ligação marcial à honra. Ontem, na batalha, receei por vós. Arrisquei-me
muito, reconheço. Pelo menos não vos haveis manchado de vergonha, respondeu o
nobre, com ar triste. Combatia no flanco ocidental, entre hordas de soldados de
infantaria, quando me ordenaram que massacrasse os nossos mercenários para evitar
que batessem em retirada. Ouvistes os besteiros?, quis saber Maynard, começando
a coxear até à sua tenda.
Robert seguiu-o, gesticulando com
as grandes mãos. Sim, os sobreviventes genoveses. O cavaleiro fez sinal de compreender,
abstendo-se de retomar a conversa. Filipe VI recrutara quinze mil besteiros genoveses
para apoiarem a cavalaria, mas não era de espantar que aqueles pobres diabos tivessem
revelado indecisão no combate. Chegados a Crécy depois de uma caminhada de mais
de seis léguas, haviam-nos obrigado a atacar sem lhes ter sido permitido descansar.
A voz de Vermandois voltou a chamar a sua atenção. Vindes com ar sombrio, Rocheblanche.
Recebestes más notícias? Maynard evitou o assunto com um sorriso vago. Desejava
apenas conferenciar com sua majestade, limitou-se a dizer, mas não se apresentou
a oportunidade. O barão picardo encolheu os ombros. Desde que fomos derrotados,
o rei não faz mais do que conversar com Karel do Luxemburgo.
Detectando uma ponta de desprezo,
o cavaleiro ficou curioso. Conhecei-lo? Não tão bem quanto o pai, respondeu
Robert. Karel é um homem ambíguo, sempre rodeado de padres e religioso até ao limite
do fanatismo. Só sei que é um cobarde. O que haveis ouvido? É dado como certo que
ontem se retirou da batalha antes do confronto decisivo. Maynard anuiu com interesse,
pois aquela informação reforçava as suas suspeitas. Mesmo que não valesse como prova
de traição, abandonar o pai no campo não depunha a favor do nobre Karel. De repente,
foi obrigado a deter-se devido a uma pontada no joelho e, pedindo ao barão que
o esperasse, percebeu ter passado os seus aposentos. Chegara à extremidade do acampamento,
onde se encontravam os soldados de baixa classe e os cavalos.
Fi-lo
andar mais do que devia, desculpou-se Robert, apontando para os estábulos, mas preciso
de um novo corcel. E visto que em Crécy sobreviveram mais cavalos do que
homens, gostava de tirar proveito do vosso conselho. Não precisais de vos justificar,
amigo. Desprezando a dor, Rocheblanche apoiou-se no cajado e avançou direito. Tenho
muito gosto em aproveitar a oportunidade, visto que também fiquei apeado. Na verdade,
sentia-se cada vez mais fraco e teria preferido ir descansar, mas não suportava
ser tratado como doente. Encontraram o guarda dos estábulos, ofereceram-lhe algumas
moedas para poderem optar pelos melhores exemplares que haviam ficado sem dono e
deram início à escolha. Não se tratava apenas de determinar se os animais eram saudáveis
e robustos, mas também do temperamento adequado. Depois de um feroz confronto, um
corcel podia perder a coragem e partir à desfilada ao menor sinal de perigo.
Consciente do risco, Maynard avaliou com atenção os animais, os movimentos das suas
pupilas, da cabeça e dos cascos, até escolher um cavalo preto de porte orgulhoso
e uma égua de carga bastante robusta para transportar o peso da armadura. Por sua
vez, Vermandois pousou os olhos num elegante cavalo branco». In Marcello Simoni, A
Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016,
ISBN 978-989-724-278-6.
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