quarta-feira, 10 de maio de 2017

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Isso comoveu minha bondosa mãe de criação, que resolveu que eu ainda não trabalharia nos serviços domésticos, e ela me disse que não chorasse mais»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Na instrução que baixaram a meu respeito, tive a sorte de ser entregue aos cuidados de uma mãe de criação, como a chamavam, uma mulher muito pobre, que já conhecera melhores dias e ganhava um parco sustento cuidando de crianças que se achavam em condições semelhantes à minha, provendo-lhes todas as necessidades até chegarem a uma idade na qual se supunha que pudessem trabalhar e ganhar o próprio pão. Essa mulher também mantinha uma escolinha em que ensinava as crianças a ler e trabalhar e, tendo vivido antes com largueza, como já disse, educava as crianças com muita arte e extremo cuidado.
Entretanto, e isso era ainda melhor, educava-as segundo os preceitos da religião, por ser séria e piedosíssima, além de excelente dona de casa, limpa, bem-educada e de conduta ilibada; por conseguinte, exceptuada a alimentação simples, a moradia humilde e as roupas grosseiras, éramos, em poucas palavras, criados de maneira tão polida e refinada como se frequentássemos uma escola de dança. Fiquei ali até os oito anos, quando fui tomada de terror ao saber que os magistrados, creio que assim eram chamados, haviam determinado que eu deveria trabalhar; muito poucos eram os serviços para os quais eu estava capacitada, não importava onde me pusessem, salvo dar recados ou servir de ajudante para alguma cozinheira; era o que com frequência me diziam, e isso me assustava sobremaneira, pois, por ser tão criança, sentia enorme aversão em desempenhar serviços domésticos, como se dizia, ou seja, trabalhar como criada; e eu disse a minha mãe de criação que acreditava ser capaz de ganhar meu sustento sem exercer serviços domésticos, se ela assim permitisse, pois ela me ensinara a fazer trabalhos de agulha e a fiar estame, que é a principal ocupação naquela cidade, e eu disse a ela que, se concordasse em ficar comigo, eu trabalharia para ela e não pouparia esforço algum.
Continuei a falar quase todos os dias sobre meu desejo de trabalhar para ela; em suma, não fazia mais que trabalhar e chorar o dia inteiro, o que tanto contristou a bondosa mulher que, por fim, começou a se condoer, pois tinha muita afeição por mim. Certo dia ela entrou no quarto onde nós, as crianças pobres, estávamos trabalhando, e sentou-se diante de mim, e não em seu lugar costumeiro de mestra, como se quisesse me observar e verificar meu trabalho: eu executava uma tarefa que ela me confiara, lembro que marcava umas camisas que lhe haviam encomendado, e passado algum tempo ela começou a falar-me, vamos, bobinha, você está sempre chorando, disse ela (pois nesse instante eu realmente chorava); diz, porque chora?; porque vão-me tirar daqui, respondi, e me pôr para trabalhar como criada, e eu não sei fazer trabalhos de casa; minha filha, disse ela, ainda que agora você não saiba fazer trabalhos de casa, como diz, com o tempo aprenderá, e no começo não vão encarregá-la de tarefas pesadas; não é verdade, vão sim, eu disse, e, se eu não souber fazê-las, vão me bater, e as criadas também me baterão para me obrigar a cumprir as tarefas pesadas, e não passo de uma criança pequena e não poderei fazer o que me mandarem; e recomecei a chorar, até não conseguir falar mais.
Isso comoveu minha bondosa mãe de criação, que resolveu que eu ainda não trabalharia nos serviços domésticos, e ela me disse que não chorasse mais e que procuraria o senhor prefeito para que eu só me empregasse quando estivesse mais crescida. Ora, isso não me tranquilizou, pois imaginar-me trabalhando em serviços domésticos era tão assustador que se ela me houvesse assegurado que eu só teria de fazê-lo quando tivesse vinte anos, para mim daria no mesmo, teria chorado, acredito, todo esse tempo, diante da apreensão de que no fim tal sorte me aguardasse. Vendo que não me sentia ainda apaziguada, ela começou a se aborrecer comigo, afinal, o que tem?, perguntou, já não disse que não terá de trabalhar nos serviços domésticos até crescer mais?; sim, respondi, mas por fim terei de ir, e ela replicou, porquê, como assim? estará louca essa menina? o que pretende ser, uma dama?; isso mesmo, respondi, recomeçando a chorar copiosamente, até ficar outra vez sem fala». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT