domingo, 28 de maio de 2017

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «Recuando no tempo, o rei viera de Elvas para Salvaterra, daqui para Almada, escolhendo esta vila por ser cerca de Lisboa e a1i encontrar o sossego que tanta falta lhe fazia»

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Morre o corpo fica a fama
Porque me fostes tão infiel?, quase implorou o monarca Fernando I quando a esposa entrou no aposento de Almada, onde o rei se refugiou para esconder o deplorável estado físico que a doença lhe provocava. Senhor, não é hora de falar de infidelidades, respondeu-lhe a rainha, sem vontade de alargar a conversa. Alguma vez vos abandonei? Isso é que conta. Não estive sempre do vosso lado? Sabeis bem o que digo. São infidelidades, senhora, não são opções, insistiu Fernando, sem já articular bem as palavras. Avisado pelo sofrimento, desde há algum tempo que o corpo do rei começara a mirrar, as dores e a febre a tomarem conta do sossego, até que viu nos sinais o fim dos seus ainda jovens dias. Após anos de frustrações militares e diplomáticas, Fernando I, cedendo ao sabor das contingências políticas e da fraqueza de carácter, estava agora no ocaso da sua existência a ser devorado pela doença, arrancando-lhe do fundo das entranhas manchas de um esverdeado pegajoso. Prostrado, estando acompanhado no aposento que lhe servia de enfermaria, na verdade era o homem mais solitário do mundo. Há meses que fugia do contacto do povo, dias e dias que não queria ver ninguém do seu serviço, a não ser as pessoas fundamentais que o ajudavam a sobreviver.
Recuando no tempo, o rei viera de Elvas para Salvaterra, daqui para Almada, escolhendo esta vila por ser cerca de Lisboa e a1i encontrar o sossego que tanta falta lhe fazia. Não é que a vila da margem esquerda do Tejo fosse um sanatório, não era isso. Escondia-se do mundo, encobria o belo aspecto que tivera, não queria que lhe vissem a carcaça ressequida de tanto vomitar as entranhas. A vida, para ele, resumia-se agora a pequenos períodos de vitalidade, pois já nem os chás nem as mezinhas tinham o efeito soporífero que os físicos desejavam. Sem vigor, sem esperança, em Setembro de 1383 decidiu voltar ao paço, a Lisboa que tanto amava, onde esperaria que a morte lhe fosse suavizada por um não sei quê de espiritualidade. Uma morte santa, talvez pensassem os seus servidores. No século XIV havia muito disto. Ainda não passara meio século desde que a Peste Negra derrubara um terço das almas na Europa conhecida, um castigo da divindade sobre os pecadores, por assim dizer uma ideia difundida pelos próceres mais sectários da Igreja. É que as mortes podiam ser invocações do Inferno ou requisições de Deus, e este rei, pelo seu percurso de vida, embora pecaminoso nos costumes, não deixava de ser uma alma inocente.
Em Almada, mestre Gil, o principal cirurgião do rei, perante a gravidade da doença, requisitou os bons ofícios de mestre Mohamad, um famoso cirurgião mouro, que não fez mais do que confirmar o que o português Gil afirmara. Sua majestade sobreviverá o tempo que os deuses deixarem. Em vista do estado crítico que o contaminava, já mal respirava e da sua garganta só saíam bocados dos pulmões embalados em viscosidade, Fernando transmitiu ao chanceler a necessidade de vir morrer a Lisboa. Ordem respeitada, o monarca Fernando quis um pouco mais: quando chegarmos, de noite, todas as luzes deverão estar apagadas, as ruas despidas de pessoas, as janelas e portas das casas cerradas.
Chegaria à capital sem darem por ele, uma toleima, pensariam os servidores, como se o mais alto magistrado do reino pudesse passar sem ser visto. Rei é rei, um pensamento que do mais humilde criado ao nobre mais notável tinha como divisa, e sendo assim, o melhor era respeitar os desejos do soberano. Mensagem recebida, mensagem transmitida. Foram enviados pregoeiros para percorrerem as ruas de Lisboa, em particular as que iam das Portas do Mar e da Porta Ferro ao Paço do Apar, avisando os moradores e passantes que deviam recolher às suas casas quando o crepúsculo assentasse sobre a cidade, ameaçando com pesadas penas aqueles que desobedecessem.
Qual seria o pensamento do rei? Nunca fora de grandes urdiduras, porquê tanto sigilo? Quereria ele apanhar Leonor Teles em flagrante delito de adultério? Não era a altura para isso. A rainha acabara de ter outra gravidez infeliz, por certo não se poria a derramar paixões adúlteras para cima do conde Andeiro, enquanto o marido se desprendia da vida. Não sendo por isto, que outra razão haveria? O povo perdera-lhe o respeito, desde o atribulado casamento com Leonor Teles, uma ideia consubstanciada pelo carácter fraco do rei, sem jeito para a guerra e menos ainda para a diplomacia, por isso talvez quisesse evitar encontros desagradáveis com a plebe». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.
                                                                               
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