sexta-feira, 26 de maio de 2017

Noites de Jasmim. Julia Gregson. «Cara Saba, gostava de lhe dizer que achei que cantou de forma esplêndida quando a ouvi no Queen Victoria»

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St. Briavels. Gloucestershire
«(…) Minha cara Saba Tarcan: a primeira tentativa dele de uma carta de fã, escrita a partir da Casa de Convalescença Rockfieid no Wiltshire fora atirada para o cesto dos papéis. Era demasiado formal e paternalista para aquele pequeno rosto trocista. Conseguira a morada dela junto de uma das enfermeiras que organizava os entretenimentos e que prometera, assim que a carta estivesse escrita, fazê-la seguir para a parte interessada.
Cara Saba, gostava de lhe dizer que achei que cantou de forma esplêndida quando a ouvi no Queen Victoria. Oh, ainda pior! Isto soava àqueles velhadas tocados que fazem esperas à porta dos artistas. Oh, mer…! Maldição! Ele atirou-a com violência para dentro do cesto. Esperara seis semanas para lhe escrever, para se certificar de que estava em condições de ser visto e pensando que, assim que estivesse de novo em casa, e já não fosse um paciente, a antiga confiança regressaria e a carta fluiria de forma melíflua da sua caneta, mas quando muito, sentia-se ainda mais desorientado por aquilo que estava a tentar dizer, o que o deixava zangado, nenhuma rapariga o fizera sentir-se assim antes. Um poema surgiu-lhe na cabeça, um poema em que ele pensara ao lembrar-se dela.
Obrigado, aconteça o que acontecer. E depois, ela virou costas
e, tal como o raio de sol nas flores pendentes
esmorece quando o vento as ergue de lado,
partiu apressadamente. Não, aconteça o que acontecer
uma hora foi iluminada pelo sol e nem os sumos deuses
se podem vangloriar de algo melhor
do que ter observado aquela hora enquanto passava.
Ele copiara-o para o seu diário no hospital, seguro de que também não o iria enviar. A poesia tornava as pessoas desconfiadas quando não nos conheciam e, sinceramente, estava-se a marimbar para toda aquela ideia de uma-hora-que-foi-maravilhosa; ele queria ouvi-la cantar de novo, mais nada. Dom, queres café, querido? A voz da mãe deslizou suavemente desde a cozinha; ela parecia mais francesa quando estava nervosa.  Estou na sala de estar. Ele olhou discretamente o relógio. Raios! Tivera esperanças de terminar a carta primeiro. Vem cá e toma-o comigo, disse ele, tentando com todas as fibras do seu ser não parecer furioso de frustração.
A mãe dele tinha-se mantido sempre por perto. Ele sentira-a toda a manhã, a tentar passar despercebida. Magra como uma avezinha, elegante no seu velho fato de tweed, eis que entrava agora com um tabuleiro, se sentara na ponta do banco de piano e servia o café. Obrigada, Misou, disse ele, usando o nome que lhe chamava em criança. Ele pegou-lhe na mão. Está tudo bem. Ele gostava que ela deixasse de parecer tão preocupada. Já não me dói nada agora. Vê, agarra-a como deve ser. A pressão hesitante que sentiu da parte dela fez surgir uma vaga de ira. Ela balanceou a cabeça timidamente, sem saber o que dizer. Em tempos, tivera muito orgulho nele. Agora, os seus ferimentos pareciam ter trazido consigo uma sensação de vergonha comum: havia demasiado a dizer e a ocultar.
Durante os meses que passara no hospital, ele fantasiara estar exactamente onde estava hoje, neste sofá, nesta casa em St. Briavels, uma aldeia minúscula na fronteira entre Gales e o Gloucestershire. No comboio que o levara de Chepstow a Brockweir, ele estava decidido a dar à mãe pelo menos alguns dias de felicidade para compensar os meses de tormento e angústia que ela suportara. Não falaria de voar novamente; não falaria dos amigos, e talvez, dali a alguns dias, com um copo de vinho na mão, surgisse um relato bem-disposto da partida de Annabel». In Júlia Gregson, Noites de Jasmim, Edições ASA, tradução de Ana Pereira, 2012, ISBN 978-989-231-964-3.

Cortesia ASA/JDACT