quarta-feira, 31 de maio de 2017

Mistério no 31. O Segredo dos Flamengos. Federico Andahazi. «Quando se acostumou um pouco à escuridão, o mestre conseguiu ver num dos cantos do quarto as costas de um menino sobre o fundo claro de uma tela»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Num dia de 1474, o abade Tomasso Verani apareceu no atelier de Francesco Monterga com uns papéis enrolados debaixo do braço. O padre Verani, que dirigia o Ospedale degli Innocenti, saudou o pintor com uma expressão fulgurante, estava mais animado do que nunca, incapaz de esconder a sua euforia. Desenrolou com grande expectativa as folhas sobre uma mesa do atelier e pediu ao mestre a sua qualificada opinião. Francesco Monterga examinou sem grande interesse o primeiro desenho que o padre lhe mostrava. Pensando que fosse uma temerária tentativa do próprio abade nos mares da pintura, tentou ser piedoso. Sem nenhum entusiasmo, com um tom que parecia querer desestimular o outro, balançando levemente a cabeça, disse sobre o primeiro desenho: não está mal. O desenho a carvão retratava os nove arcos do pórtico do orfanato construído por Brunelleschi, e o mestre pensou que podia ser muito pior, por se tratar de um principiante. Chamou a atenção para o bom manejo da perspectiva que dominava a visão do pórtico, ao fundo, o bom traço com que havia sido desenhado o campanário da Santissima Annunziata. O uso de luz e sombra era um tanto torpe, mas pelo menos estava próximo do procedimento usual. Antes que pudesse formular uma crítica mais conclusiva, o padre Verani abriu outro desenho sobre o primeiro, que o mestre ainda não havia examinado completamente. Era um retrato do próprio abade, uma sanguina (giz de cera de cor vermelha) que revelava um traço inocente mas decidido e solto. A expressão do padre havia sido alcançada no retrato. De qualquer modo, disse o mestre para si mesmo, entre a correcção que os desenhos mostravam e o talento de um artista havia um oceano intransponível. Ainda mais considerando a idade do abade Verani. Procurou encontrar as palavras adequadas para, por um lado, não ferir o amor-próprio do padre e, por outro, para não entusiasmá-lo em vão.
Meu querido abade, é evidente a dedicação que estes trabalhos revelam, mas na nossa idade..., titubeou. Quero dizer..., seria a mesma coisa que se eu, na minha idade, aspirasse a ser cardeal... Como se tivesse acabado de receber o maior dos elogios, o padre Verani, com os olhos brilhando, interrompeu o veredito: e o senhor ainda não viu nada, disse o padre. O padre Verani tomou o braço de Francesco Monterga e praticamente o arrastou até à porta, deixando sobre a mesa o resto dos desenhos. Levou-o escadas abaixo e, antes que o mestre pudesse falar, já estavam na rua, a caminho do Ospedale degli Innocenti.
O mestre conhecia a veemência do padre Verani. Quando metia algo na cabeça, não havia razão capaz de dissuadi-lo de alcançar os seus propósitos. Caminhava sem soltar o braço de Monterga, que, enquanto tentava seguir o passo do abade, não se perdoava por ter sido brando em seu veredicto. Quando dobraram na via dei Servi, o pintor soltou-se da mão pegajosa que apertava o seu braço e esteve a ponto de gritar ao padre o que devia ter dito minutos antes, no atelier. Mas já era tarde. Estavam na porta do hospício. Cruzaram em diagonal a piazza, passaram por baixo do pórtico e entraram no edifício. Armado com um escudo de paciência e resignação, o mestre estava disposto a perder a manhã com o novo capricho do abade. O pequeno cubículo a que foi conduzido era um atelier improvisado, escondido atrás do ambulatório; era um lugar tão reservado que parecia ser clandestino. Aqui e ali se amontoavam tábuas, telas, papéis, pincéis, carvões e se respirava o cheiro áspero do atramento (tinta escura também usada como verniz) e de extractos vegetais. Quando se acostumou um pouco à escuridão, o mestre conseguiu ver num dos cantos do quarto as costas de um menino sobre o fundo claro de uma tela. A mão do pequeno ia e vinha pela superfície da tela com a mesma desenvoltura de uma andorinha voando pelo céu transparente. Era uma mão tão pequena que quase não conseguia segurar direito o carvão. Conteve a respiração, emocionado, temendo que o menor ruído pudesse estragar o espectáculo. O padre Verani, com as mãos cruzadas sob o abdómen e com um sorriso santificado, contemplava a expressão perplexa e maravilhada do mestre». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.

Cortesia de L&PM Pocket/JDACT