Cortesia
de wikipedia e jdact
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Por mais favorável que queira ser, o cronista não deixa de informar que o
primeiro rei de Portugal precisou do apoio dos nobres para entrar na posse da
herança paterna, e que sairia derrotado se ela não tivesse existido. Mais
ainda, a tentativa de lutar sozinho é qualificada de falta de siso. Aproxime-se
este passo da qualificação de esquivo usada pelo cronista para caracterizar o
comportamento inicial do seu herói, ao fazer um certo balanço de todo o reinado.
Em
segundo lugar, é também ambivalente o sentido atribuído ao comportamento de
Afonso Henriques para com sua mãe, apesar de ser esse mesmo comportamento que
constitui o fio condutor da intriga que envolve o primeiro reinado da Primeira
Crónica. O cronista utilizou, sem dúvida, este episódio como elemento de ligação
entre as sequências definidas pelos materiais que reuniu, incluindo a narrativa
sobre o destino trágico do seu herói, mas não nega, antes acentua, que a
derrota em Badajoz se deveu a uma maldição ou um castigo divino. A maldição
funciona de facto como a chave da coerência narrativa. A memória construída
pelo primeiro cronista português não só não apaga por completo visões
divergentes acerca do rei fundador, conforme os meios sociais que a
interpretaram, mas também faz prevalecer como sentido fundamental da vida do
herói o destino marcado pela maldição. Com efeito, à artificialidade formal da
frase com que se liga a história do Bispo Negro à narrativa de S. Mamede. E
o apostolico ouvio dizer…, corresponde a maneira como o cronista introduz o
relato de Badajoz, como um acrescento, depois de uma breve avaliação de todo o
reinado: depois desto pollo mall e pollo pecado que fez a sua madre….
Tanto
mais que não se pode ignorar a existência de outra tradição acerca do desastre
de Badajoz, igualmente apresentado como castigo divino, não ainda por causa da
maldição em que o rei incorreu pelo quase matricídio, mas como punição devida
às violências cometidas contra o mosteiro galego de Celanova durante a guerra
com Fernando II. Esta interpretação está de tal modo bem documentada na Vita
Sancti Rudesindi que Lindley Cintra admitiu a sua origem leonesa. De facto
conhecem-se hoje melhor os prolongados contactos estabelecidos por exilados
portugueses na corte leonesa desde a década de 1170, os quais regressaram
depois a Portugal, e que não tinham grandes motivos para exaltar a memória da
Afonso Henriques. A narrativa aproveitada pelo cronista português, destinada,
quem sabe, a reabilitar a memória de dona Teresa, podia ter sido transmitida
por eles. Esta hipótese pode não ser muita sólida, mas teria pelo menos a
vantagem de contextualizar a intervenção em discurso directo do nobre Fernando
Rodrigues, o Castelão, membro da corte leonesa, quando Afonso Henriques jazia
deitado com uma perna quebrada num campo de centeio. Duvido que o nosso
cronista tivesse transmitido esta informação acerca de uma personagem
inteiramente desconhecida na corte portuguesa do fim do século XIII se não a
encontrasse nalgum texto escrito, ou não corresse nos meios fidalgos que tinham
tido contactos especiais com a corte de Leão, uma narrativa oral sobre os
acontecimentos de Badajoz.
Não
me parece, pois, muito sensato, desprezar o estudo das origens de narrativas
usadas pelo cronista para construir o seu texto. Este trabalho teria a vantagem
de ajudar a definir melhor o perfil do redactor. Filipe Moreira apontou já
alguns dos seus traços. O mais importante, a meu ver, é o que se baseia na
premissa de que lhe pertence exclusivamente a ele, isto é, que não provém de um
texto alheio, o relato acerca da deposição de Sancho II. Considera-o, creio que
com razão, um letrado da corte régia interessado em defender a legitimidade de
Afonso III como sucessor de Sancho II. Com efeito tendo em conta as
alternativas possíveis para o lugar de redacção da Crónica, Santa Cruz de
Coimbra, Alcobaça, corte senhorial ou corte régia, e tendo Filipe Moreira
reunido vários argumentos para eliminar as três primeiras alternativas, mesmo a
de Alcobaça, por considerar acrescentos os passos que com este mosteiro se
relacionam, resta a possibilidade de considerar o hipotético cronista como um
letrado da corte de Afonso III. Aos argumentos de carácter negativo avançados
por Filipe Moreira, pode-se acrescentar um outro, do mesmo tipo, mas com um
fundamento textual preciso, baseado na maneira como o autor da Crónica descreve
o papel da cidade de Coimbra no conflito com Sancho II. É evidente a sua
animosidade contra esse boa vila, por ter resistido ao conde de Bolonha, mas
onde ele poderia ter entrado se quisesse. Fica assim excluída uma eventual
origem coimbrã do autor.
Este
elemento vem, pois, reforçar a tese da origem não canonical do texto, apesar
ter sido em Santa Cruz que se preservou a cópia que melhor representa o
original. Filipe Moreira não deixa de aludir de passagem a este pormenor.
Todavia, limita as hipóteses de identificação do scriptorium de origem
às quatro que mencionei. Admitindo o bom fundamento da argumentação, queria, em
todo o caso, chamar a atenção para um dado que pode contribuir para definir
melhor a personalidade do cronista. Quero-me referir à
lista de boas obras registada no fim do reinado de Afonso I: a fundação da
Ordem de Santiago, a protecção de Santa Cruz de Coimbra, a
edificação de Alcobaça, o transporte do corpo de S. Vicente para Lisboa, a
edificação de um mosteiro muy rico aa sua custa em S. Vicente de Fora, a
conquista de Évora e a criação da sua diocese, e ainda, além da conquista de
muitas vilas e castelos, é esta a passagem mais significativa, a doação ao Hospital
de Jerusalém, em Évora, de oiteenta vezes mill maravidiis em ouro pera
comprarem erdades e que dessem aos enfermos da enfermaria cada dia por pitança
senhos pãaes queentes de trigo e senhos vassos de bõo vinho. E que o
encomendassem em cada huum dia em oraçom». In José Mattoso, A Primeira
Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN
1646-740X.
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