Cortesia
de wikipedia e jdact
«Quando a primeira luz do dia
entrou pelas frestas do barracão já deviam ser seis da manhã. A claridade
iluminou e identificou o objecto que alguém enfiara sob a lona, na escuridão da
noite. Era uma Bíblia encadernada, provavelmente subtraída de algum hotel. Aos
37 anos, o empresário Guilherme Affonso Ferreira, o Willy, nunca havia tido a
curiosidade de abrir uma Bíblia. Mas a vida inteira ouvira o avô, o pensador
cristão Alceu Amoroso Lima, e a tia Lia Amoroso Lima, a irmã Maria Tereza, abadessa
do Convento das Beneditinas Enclausuradas em São Paulo, dizerem que ali,
naquele livro, estava o conforto dos aflitos e desesperados. Nas circunstâncias
em que se encontrava, era um presente sob medida. Abriu o volume nas primeiras
páginas, ao acaso, e deu com os olhos no seguinte trecho: Ló sumiu de Segor e
foi morar nas montanhas com as duas filhas, pois tinha medo de ficar em Segor.
Instalou-se numa caverna com as duas filhas e a mais velha disse à mais nova: Nosso
pai já está velho e não há aqui homens com quem nos possamos casar, como fazem
todas. Vamos embebedar o pai com vinho e dormir com ele para ter filhos dele. Embebedaram
o pai naquela noite e a mais velha foi dormir com ele sem que ele nada percebesse,
nem quando ela se deitou nem quando se levantou. No dia seguinte a mais velha
disse à mais nova: ontem eu dormi com o pai. Vamos embebedá-lo também esta noite
e tu vais dormir com ele para gerar descendência de nosso pai. Também naquela noite
embebedaram o pai e a mais moça dormiu com ele. Ele, porém, nada percebeu, nem quando
ela se deitou nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu
pai. A mais velha deu à luz um filho a quem chamou Moab, que é o antepassado
dos actuais moabitas. Também a mais nova deu à luz um filho a quem chamou
Ben-Ami, que é o antepassado dos actuais amonitas. (Gênesis)
Fechou o livro com raiva e
jogou-o num canto da jaula. Para quem recorria à Bíblia em busca de apoio
espiritual, encontrar um pai engravidando as próprias filhas parecia um mau presságio
para o primeiro dia de cativeiro. Tudo começara na noite anterior, uma
sexta-feira de Dezembro de 1988. Willy deixara o seu moderno gabinete de
presidente da Bahema, empresa distribuidora de máquinas Caterpillar para o
Norte e Nordeste, para repetir uma rotina diária: entrou no seu carro, um Fiat
Uno azul-metálico, e guiou durante meia hora pelo trânsito caótico de Salvador,
na Bahia, até à academia de ginástica, que fica a quinhentos metros de sua
casa, no ermo e elegante bairro do Horto Florestal. Ao terminar os exercícios eram
oito da noite.
Decidiu tomar banho em casa e
saiu de bermudas, polo e ténis. Ao chegar perto do carro, estacionado sob um
poste de luz na rua deserta, havia um Monza escuro parado ao lado do Fiat, com
três homens dentro. Quando o viram chegar, os homens saíram do carro e um
deles, de boné na cabeça, fez um sinal para os outros. Willy assustou-se,
caminhou alguns passos de costas, mas já não havia tempo de escapar. Os três o cercaram,
eram fortes e aparentavam ter entre trinta e quarenta anos, e Willy agitou o chaveiro
no ar: podem levar o carro.
Infelizmente não eram ladrões. Um
deles, com uma algema saindo pelo bolso da calça, aproximou-se com uma
carteirinha e anunciou: Polícia Federal! Willy foi agarrado pelos três,
algemado com as mãos nas costas e colocado aos safanões no banco de trás do
Monza. Enfiaram um capuz de tecido grosso na sua cabeça e o deitaram no banco.
Um dos homens ia sozinho na frente, guiando o carro, e os outros foram atrás, segurando
a presa. Com 1,80 metro de altura, Willy ia meio dobrado, com a cabeça sobre o colo
de um e os joelhos dobrados junto às canelas do outro. Mal o carro arrancou, um
deles perguntou: como é o seu nome? Guilherme Affonso Ferreira. Quanto tempo
faz que voltou do Japão? Uns vinte dias. Quanto tempo ficou por lá? Uns cinquenta
dias, mais ou menos. O que perguntava dirigiu-se aos outros: é ele mesmo.
O
que a Polícia Federal poderia querer com ele, um empresário sem nenhum deslize na
sua vida pessoal e profissional, sem problemas com a polícia, com a Justiça,
com ninguém? A curiosidade sobre a viagem ao Japão deixou-o apavorado. E se ele
tivesse sido transformado, inocentemente, em uma dessas mulas que sempre
aparecem nos noticiários de TV? Será que alguém tinha colocado cocaína na sua
bagagem, na viagem do Japão ao Brasil? O pensamento foi interrompido por mãos
que agarraram a sua cabeça e tentaram obrigá-lo a aspirar um chumaço de algodão
embebido em éter, espremido contra a boca e o nariz por fora do capuz. Willy debateu-se,
tentando dizer que não era preciso violência, que não ia reagir, mas na confusão
os homens não entenderam nada. O que ia a conduzir ordenou: ele não vai ficar
quieto, dá logo a injecção». In Fernando Morais, Cem quilos de ouro, Companhia
das Letras, 2003, ISBN 978-853-590-449-9.
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