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Neste sentido, é de lembrar que já
remonta aos próprios tempos antigos a diversidade de leituras estabelecidas em
torno dos marcos históricos que foram pressentidos pelos próprios antigos como
sinais do fim de todo um período. Assim, enquanto alguns autores pagãos,
particularmente tomados por uma visão pessimista, tenderam a encarar o saque de
410 sob a perspectiva de um acontecimento que sinaliza uma decadência que havia
fragilizado o Império e possibilitado o saque de Alarico, já será outra a visão
de Paolo Orósio (c. 385- c. 420), autor da primeira história universal escrita
por um cristão e entretecedor de uma avaliação dos acontecimentos históricos
onde cada aspecto ou acontecimento é medido em função da sua aproximação ou
afastamento em relação ao cristianismo. Para Orósio, o saque visigodo do ano de
410 é positivado simultaneamente como demonstração do juízo de Deus e como
anúncio de uma nova era que estaria por vir, acrescentando-se ainda a ênfase numa
leitura sobre Alarico como visigodo convertido que desfecha um golpe fatal
sobre a Roma pagã. Este tipo de leitura divinizante da história, aliás, onde
cada acontecimento (seja este um sucesso ou uma catástrofe) fala directamente
de Deus e de uma relação dos actores humanos com Ele, que pode no caso ser
punida ou premiada, seria prontamente incorporada na Idade Média.
Os embates em torno da perspectiva da decadência do Império
Romano já afloram, portanto, na própria época de desarticulação do mesmo. Em
vista disso, amparando-se numa cuidadosa análise historiográfica sobre a
apropriação e reapropriações desta noção carregada de sentido valorativo, Santo
Mazzarino procura ressaltar os problemas de utilização da noção de decadência
pela moderna historiografia, e sua recomendação taxativa é a de rejeitar a
compreensão da Antiguidade Tardia como um período de decadência.
A polémica em torno da ideia de decadência aplicada à
transição entre os períodos antigo e medieval é, como nos poderiam mostrar
outros autores, bastante problemática. Por fim, veremos oportunamente, ao lado
das ideias de declínio, queda e decadência, outros conceitos que têm sido
propostos pela historiografia recente, incluindo o de desagregação, todos com
implicações mais específicas para o estudo do último período do Império Romano.
Novos
campos historiográficos e novas leituras da passagem
Por ora, consideraremos que os desenvolvimentos
modernos da historiografia sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média correspondem
precisamente à superação desta dicotomia que, apesar de gerada por posições
aparentemente inconciliáveis, o assassinato ou a morte natural do Império,
trazem como pano de fundo um mesmo posicionamento historiográfico francamente
baseado nos acontecimentos políticos em nível institucional. Com o
desenvolvimento da historiografia do século XX, o olhar dos historiadores vai
como que se desatrelando desta exclusividade em relação à história política de
âmbito institucional, e cada vez mais novas dimensões vão sendo colocadas em
cena como questões centrais passíveis de serem examinadas. Economia, cultura,
mentalidades, imaginário, demografia, a afirmação de novas especialidades da
história voltadas para o diálogo com estas dimensões fundamentais permite que
um mesmo conjunto de acontecimentos seja beneficiado por diversificadas
cronologias que dependerão do problema a ser examinado pelo historiador.
Os estudos de análise histórica de populações, por exemplo, ao
instituírem a partir de meados do século XX um novo campo histórico a ser
definido como história demográfica, rechaçam por princípio a antiga maneira
historiográfica de apodar de invasões bárbaras ao fenómeno do adentramento do Império
Romano por povos diversos. Nem invasões e nem bárbaras, aliás, pois duplamente
tem sido revista esta antiga maneira de interpretar o movimento de gentes que
iria transformar tão completamente a face do Império Romano». In José D’Assunção
Barros, Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN
978-853-264-454-1.
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