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«(…) Depois de terem recuperado as
selas e os atavios necessários, afastaram-se levando os animais pelas rédeas. Vinde
até à minha tenda, convidou o picardo, satisfeito com a escolha. O espertalhão do
meu criado arranjou aguardente, e sabe Deus como detesto beber sozinho...
Ouviu-me, Rocheblanche? Maynard só pronunciou umas sílabas mal articuladas. O seu
olhar embaciava-se, dando-lhe a impressão de vaguear num esplendor ofuscante. De
repente, deixou de avistar o chão que pisava e então, tomado de pânico, agarrou-se
às rédeas do cavalo para manter o equilíbrio. Mas a progressiva perda de forças
fê-lo cair por terra.
O pano embebido em sangue deslizou
da testa. Uma mão, rápida, apanhou-o para o voltar a colocar no lugar. Eu disse-vos,
senhor, que estáveis com péssimo aspecto. Maynard acordou com um suspiro de alívio,
encontrando-se nos seus aposentos. Sentia a testa em chamas e a perna
incrivelmente inchada. Tentou levantar-se, mas o rapaz obrigou-o a permanecer deitado,
comprimindo-lhe o tórax com a palma da mão. Incapaz de se opôr àquele gesto
simples, o cavaleiro deu-se conta da própria fraqueza. Experimentou, além disso,
uma grande angústia, que inicialmente não soube explicar. Depois, lembrou-se de
ter sonhado com o Cristo crucificado da velha igreja, com as aberturas dos olhos
escancaradas em órbitas negras, das quais saíam grandes vermes. Foi invadido
por uma tal repugnância que sentiu o impulso de fugir. A mão, mais uma vez, impediu-o.
O senhor de Vermandois trouxe-vos até aqui sem sentidos, explicou o rapaz. Carregando-vos
nos braços como se fosseis uma mulher. O cavaleiro tentou falar, mas lembrou-se
de que tinha a garganta seca. Esboçou um sorriso. Imagino..., sussurrou, o teu divertimento...
As gargalhadas do rapaz distraíram-no da sensação de horror, permitindo-lhe cair
novamente no sono. Em paz.
Demorou
uma semana a recompor-se. Foi obrigado a permanecer deitado no catre, à espera de
recuperar as forças, enquanto ouvia vozes sobre a partida de um grupo cada vez maior
de soldados. A vontade de Filipe VI de suspender as operações militares espalhara-se,
levando os guerreiros de alto estatuto a abandonar o acampamento para
regressarem aos seus feudos. No entanto, sua majestade demorava-se na igreja derrocada
juntamente com um círculo reduzido de fiéis. Maynard pedira ao rapaz que o informasse
acerca dos seus nomes, descobrindo que no grupo também se encontrava Karel do Luxemburgo.
Não conseguira outras notícias acerca dele, excepto o rumor de que era esperado
com urgência em Colónia. Contudo, o príncipe hesitava em partir». In Marcello Simoni, A
Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016,
ISBN 978-989-724-278-6.
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