quinta-feira, 18 de maio de 2017

Aposta Indecente. Matilda Wright. «Como tudo era calmo naquela casa, nesse ano de 1834, quando Martine lhe pegou na mão e o conduziu pela enorme escadaria de mármore»

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«Havia duas coisas que Louis de Villeclaire não dispensava: um bom champanhe e mulheres bonitas. Como Cléa, a pequena alsaciana acabada de chegar à casa de madame Martine e que lhe mostrava que sabia usar a língua não só para falar quando foram interrompidos por vozes vindas do salão, no andar de baixo, e barulho de gente que corria e falava no corredor. Que inferno!, exclamou Louis erguendo-se num cotovelo, o belo corpo nu iluminado pelo enorme candelabro de doze velas que ardiam ao lado da cama. Cléa parou de lhe la… o interior das coxas musculosas. Olhou para ele um pouco assustada: será fogo?, a jovem abriu muito os seus já enormes olhos castanhos. Louis soltou uma gargalhada irónica. Fogo, Cléa? Diz antes a besta do Vertou! Não sei porque é que Martine franqueia a porta da sua casa a esses burgueses novos-ricos que não sabem portar-se como cavaleiros...
A moça saiu da cama com um salto ágil de gazela e envolveu as suas deliciosas curvas num luxuoso roupão de seda cor de pérola, bordado com exóticos pássaros azuis e laranja. Vou ver o que é..., disse Cléa, e saiu do quarto, fechando a porta atrás dela. Louis deixou-se ficar estendido na cama, irritado com aquela interrupção inusitada. A culpa era, certamente, de Vertou que não sabia nem beber nem tratar com mulheres e que, nadando em dinheiro novo, frequentava agora os melhores bordéus de Paris. Ainda há dois dias tinha armado um enorme escândalo na casa de Colette, numa festa em que ele e os seus amigos de pândega se deixaram açoitar com chicotes pelas moças. Um depravado sem maneiras! Até para se ser depravado era preciso ter educação. Essa era, pelo menos, a opinião de Louis de Villeclaire, ele próprio um depravado assumido. Uma fama lendária envolvia o seu nome desde a primeira noite em que pisara o melhor e o mais exclusivo bordel de Paris.
Oh! Como as coisas tinham mudado... Ainda se lembrava daquela tépida noite de primavera de 1834 quando o seu pai, o velho marquês de Villeclaire, o tinha trazido, pela primeira vez, a ele e a Gaston, o jovem príncipe de Montblanc, àquela casa. Ainda hoje, mais de vinte anos depois, podia sentir a maciez das alcatifas que atapetavam as salas, o cheiro suave do perfume das mulheres, o toque delicado dos seus vestidos soltos, quase transparentes, que mostravam mais do que encobriam. E lembrava-se de Martine, claro! Como poderia tê-la esquecido? O porte de rainha da bela mulata, os seus olhos verdes, amendoados, os lábios cheios, trocistas, recostada numa chaise longue forrada a veludo cor de sangue, lânguida. Lembrava-se de se ter sentido minúsculo perante aquela mulher de 40 anos que o olhava de cima a baixo e cujos olhos o atingiram como um raio. Da vergonha que sentiu de que os outros, o pai, sobretudo, pudessem perceber a sua aflição. E a mão de Martine a acariciar-lhe o rosto: como é bonito..., disse Martine, e o seu sotaque crioulo soou como música aos ouvidos do jovem Louis.
E depois, voltando-se para Gaston, passando-lhe os dedos pelos caracóis loiros: mon prince! Como tudo era calmo naquela casa, nesse ano de 1834, quando Martine lhe pegou na mão e o conduziu pela enorme escadaria de mármore que leva ao seu quarto. Louis tinha apenas 15 anos e sentia as pernas tremerem enquanto vencia os degraus. Mas também se lembrava que essa fora a primeira e única vez em que lhe custou subir aquelas escadas. Depois dessa noite, voltara milhares de outras noites. Quase sempre com Gaston, o cobiçado príncipe de Montblanc, e também com Laurent, conde de Juy, Pierre, marquês de Forchemont, e Marcel Bachelard, filho de um dos maiores banqueiros da França, burguês e judeu, é certo, mas educado pelos melhores preceptores de Paris e, por isso, um homem elegante, refinado e também ele um dos seus companheiros inseparáveis de diversão desde o tempo em que todos frequentavam o mesmo colégio. Como tudo era civilizado e silencioso na casa de Martine, em 1834 e nos muitos anos que se seguiram. Aconchegou-se mais entre as cobertas fofas da cama de Cléa e ficou pensando no calor suave de todos os corpos de mulheres que tinha amado naquela casa. Nanette, Renée, a louca Helène, insaciável, que fazia amor coberta de esmeraldas e contava que era filha ilegítima do czar Alexandre da Rússia...
O conde de Joubert, senhor marquês..., ia começar Cléa contando quando voltou a entrar no quarto, pálida, como se tivesse visto um fantasma. Louis voltou-se na cama, desagradado por aquela entrada intempestiva ter-lhe desviado o pensamento de Helène, a louca, com quem uma tarde tinha feito sexo atrás de um dos túmulos da cripta de Notre-Dame. Não seja mau, venha aqui comigo. Vou rezar para que o pai me aceite como sua filha. Quero vê-lo, tinha escrito no bilhete que lhe mandou pela criada. E ele foi, por vontade e porque não queria a tarde literária na casa da tia Clemence, princesa de Auvergne. Poesia chocha, chá quente, velhas cheirando a violetas e moças desengraçadas, mortas por o caçarem como marido, apesar da má fama que o envolvia, mas deslumbradas pelo seu título de marquês de Villeclaire e, também, pela sua enorme fortuna. Chatice por chatice antes as rezas de Helène para se tornar princesa da Rússia, à literatura da tia. Por isso foi e por isso mostrou a cripta da catedral a Helène quando ela, fazendo beicinho, lhe pediu: imagine, há dois anos vivendo em Paris e nem conheço a Notre-Dame! Helène, de repente, muito interessada nos pormenores da arquitectura mortuária francesa». In Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011, Editor Livros d’Hoje, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT