segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Templário Negro. Roberto Genovesi. «Algures à sua volta, o capacete parara de rolar. Quando voltou a tê-lo entre as mãos, selou a descoberta com outra blasfémia picaresca»

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Manescalia. Terra Santa. 3 de Julho, anno Domini 1187
«(…) São Patrício era um grande safado. Leofric maldisse o dia em que decidira tomar conta daquele potro. Mas fê-lo entre duas blasfémias sussurradas a meio-tom. Certamente, assemelhava-se um pouco ao escudeiro de um cavaleiro templário em posição de quatro patas, como um cão, com o pó a queimar-lhe a garganta e a terra a impedi-lo de abrir as pálpebras, mas São Patrício reparara nele desde o dia em que, para o ferrar, lhe espetara por engano aquele prego na cartilagem acima do casco. Tinha a certeza de que antecipava o gozo daquele momento há muito. Percebia-o pelos relinchos de satisfação que ouvia, cada vez mais afastados, enquanto o animal fugia a trote. Vai-te embora. Vai para casa ruminar aveia. É o que sabes fazer melhor!, gritou-lhe, enquanto o animal se afastava. És apenas uma pileca!
Algures à sua volta, o capacete parara de rolar. Quando voltou a tê-lo entre as mãos, selou a descoberta com outra blasfémia picaresca, certo de que daquela vez a salvação da sua alma também não estaria em perigo. O segredo era precisamente aquele. Explicara-lho o padre que o acompanhara desde o dia do baptismo até ao momento em que envergara o primeiro elmo de combate. Se quiseres tornar-te um bom cavaleiro, tens de ter a alma pura, mas, e o padre Sean também o reconhecia, nestes tempos é difícil manter as promessas. Sobretudo se o interlocutor é o Altíssimo. Mas se deres ao teu cavalo o nome de um santo, de um mártir ou de um apóstolo, nos momentos de confronto nunca te arriscarás a oferecer a alma a Satanás. Um magro consolo, tendo em conta tudo o que acontecera num segundo, e o seu senhor, que o precedia com o primeiro conroi da expedição, prosseguira sem se aperceber de nada. Agora era preciso dar tudo por tudo para recuperar o terreno perdido, nem que fosse preciso desestribar outro escudeiro. Tinha de chegar ao acampamento com os outros cavaleiros para que todos pudessem ver Leofric, o pitta, o filho do moleiro, desfilar, orgulhoso, à sombra do estandarte do Templo. Um estandarte que, seguramente, num dia não muito longínquo, seguraria com as suas próprias mãos.
Imaginara o momento em que, de madrugada, deixara para trás as torres de Manescalia. À cabeça do exército cristão, vira nada mais nada menos que Raimundo de Trípoli com os seus cinco mil soldados de infantaria e trezentos cavaleiros. Atrás de si, reconhecera as milícias citadinas e a cavalaria de Guido de Lusignan e de Henrique II de Inglaterra. Seguidos em silêncio por um grupo diminuto de cavaleiros leprosos da Ordem de São Lázaro. Ao Templo e aos seus monges cabia a honra de fechar a formação com duzentos sargentos e cento e cinquenta cavaleiros. Um deles era o seu senhor, e Leofric, na amálgama de carroças, catapultas e animais de carga, avançava montado no seu jovem corcel como se viajasse sustido por centenas de braços invisíveis, saboreando antecipadamente o momento em que enfrentaria a sua primeira e verdadeira batalha, aos ombros de heróis que na Europa eram considerados os baluartes do cristianismo na Terra Santa. Ele, um simples escudeiro arrancado à despensa de uma embarcação de carga de um jovem guerreiro em viagem a caminho da glória, que apenas no dia anterior fora ordenado cavaleiro. Um acaso? O destino? A vontade de Deus? Leofric não fora capaz de responder. Mas mesmo então, com o rosto empastado em suor e pó, diante de um pôr do Sol vermelho como a cruz que os cavaleiros traziam ao peito, a única coisa que desejava era chegar montado, nem que fosse numa mula, ao local definido pelo destino para a contenda.
Ajoelha-te! Um cavalo passou-lhe à frente, a trote, lançando-lhe mais pó à cara. O soldado que o montava lançou-lhe uma olhadela de soslaio. Leofric levantou a cabeça de repente. Reconheceu de imediato as insígnias dos bispos de Acre e de Lida, rodeados por uma dezena de cavaleiros armados até aos dentes. Entre os escudos fechados em protecção dos dois prelados surgiu um elmo em forma de mitra, sobre o qual se destacava em relevo uma grande cruz de bronze. O bispo de Acre sustinha um longo bastão que terminava com um estandarte que representava o rosto de Cristo. O sinal de que a Vera Cruz, o madeiro em que fora crucificado o filho de Deus, viajava com ele. E, de facto, precisamente atrás do seu cavalo, num grande baldaquim erguido sobre quatro rodas cheias, carregava, de forma lenta e orgulhosa, uma gigantesca cruz plantada com uma coroa de polé sobre um pedestal de ferro. A madeira escura destacava-se dos profundos sulcos produzidos pela luz do Sol e do movimento sobre a superfície de ouro com que fora banhada. No cruzamento dos braços estava encastoado um relicário dourado, incrustado com pérolas e pedras preciosas e protegido por uma grade. A santa relíquia repousava naquele precário guarda-jóias». In Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT