sábado, 13 de janeiro de 2018

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Tenhamos fé! Não há força senão em Alá, o Alto, o Magnífico! Se for Sua vontade que resistamos aos invasores, salvando a nossa cidade…»

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«(…) Zubaida agarrou as mãos da moça e pediu aflita: não o podes fazer. A cruz pertencia à minha família. Só tu deverás usufruir dela. A cruz está escondida na casa de meu pai. Ele tem o direito de saber o que se passa dentro das suas quatro paredes. Não, tens que me prometer que... Por favor mãe, poupa-me a uma coisa dessas! Mas irás pertencer a um cruzado e vós os dois devereis guardar a cruz. Porque me torturas dessa maneira?, replicou Aischa, de lágrimas nos olhos. Eu quero casar com Amir, ser uma boa esposa e uma boa mãe para os filhos dele. Oh sim, e ter que o dividir com outra, duas ou até três mulheres! Aischa tinha que admitir que essa perspectiva não lhe agradava. No entanto, teria que se sujeitar a isso, caso o seu futuro marido se resolvesse a manter mais esposas, pois o Corão permitia a um homem o máximo de quatro. Ripostou: se tiver que ser... Afinal, a maior parte dos cristãos casados mantém concubinas, apesar da sua religião os proibir de tal, alguns sem se darem ao trabalho de as esconder. Zubaida esboçou um sorriso indulgente: independentemente do que digas, não escaparás ao teu destino. E a cruz... Não! Zubaida apertou as mãos da filha e até ergueu o tronco. A sua voz tremia devido ao esforço: não sobreviverei a esta noite. Tens que me prometer que manterás o segredo. Não posso, replicou a moça, que já soluçava. Por favor! Zubaida tinha também lágrimas nos olhos. — Pertenceu à minha família, que vi perecer às espadas dos infiéis, era ainda mais nova do que tu. Peço-te, minha filha! Apesar das mãos da moribunda tremerem violentamente, não aliviavam a pressão que exerciam nas de Aischa. Era o último desejo de sua mãe e a jovem teve de ceder: está bem. Prometo-te minha mãe, fica descansada! Graças a Deus, suspirou Zubaida. Deixou cair a cabeça em cima da almofada e fechou os olhos. Não os tornou a abrir nem a proferir palavra, até que uma hora mais tarde deixou de respirar.
Zubaida foi a enterrar a 29 de Junho, o sol brilhava radioso no céu azul. A família de Malik Ibn Danaf dirigiu-se ao almocavar, o cemitério islâmico fora de muros, que se estendia pela encosta leste da alcáçova. O pai de Amir, como sábio do Corão e líder religioso, presidiu à cerimónia. Quando já regressavam, ainda antes de entrarem na cidade, ouviram a voz do muezim que, do alto do minarete, chamava os crentes à oração. Aischa e os seus acompanhantes olharam-se perplexos, pois o sol ainda não se punha: era cedo demais para a oração da tarde. Ao passarem a bâb al-maqbara, porta assim chamada por ser a que se usava para se deslocarem ao cemitério, ainda se espantaram mais. Gente apressada cruzava as ruas, até mulheres, que a esta hora adiantada raramente saíam de casa. Também muitos dos habitantes dos arrabaldes entravam na cidade, como se procurassem refúgio, fugindo a um perigo extremo. Teria a ver com o malfadado Ibn Errik, que já há alguns dias devastava a região com os seus homens? Conquistara torres de atalaia e rubut, os mosteiros-fortalezas, dos quais o mais conhecido era o de Saqabân (actual Sacavém). Os portugueses tinham-se porém mantido à distância, tanto de Lusbuna, como de Sintra, pelo que todos haviam acreditado que estivessem prestes a retirar, satisfeitos com os despojos. Malik Ibn Danaf avistou um conhecido e perguntou-lhe: o que se passa? Alá o Altíssimo nos guarde!, retorquiu o homem. Foi avistada uma enorme armada de majus, esses pagãos vindos dos confins do norte. Mais de uma centena de naus prepara-se para entrar no Wâdi Tâjuh! (o rio Tejo) O coração de Aischa começou a martelar. Teria a alma de sua mãe, cujo corpo tinham acabado de enterrar, alguma coisa a ver com isto? O rei português, acrescentou o homem, foi ao encontro deles. Al-Attar o nosso alcaide vai agora dirigir-se aos fiéis na mesquita aljama. Também o mercador e a sua família se dirigiram à maior mesquita de Lusbuna.
As mulheres, separadas dos homens, ajoelharam-se em cima dos tapetes, viradas para o mihrab, o sinal na parede da mesquita que indicava a direcção das preces: o leste, onde se situava a cidade de Meca. O alcaide dirigiu-se ao mindbar, o púlpito ao lado do mihrab, onde ao meio-dia das sextas-feiras os líderes religiosos pregavam aos crentes, e anunciou: ainda não sabemos quantos majus vieram. Os nossos vigias contaram entre 150 a 200 naus, serão por isso mais de dez mil homens. O exército de Ibn Errik, Alá o maldiga, é o maior que ele alguma vez reuniu, já que recebeu reforços do norte do seu reino. Depois da conquista de Shantarin, os seus comandantes apelaram novamente às armas e conseguiram entusiasmar muitos, pois certamente já sabiam que esses cruzados vinham a caminho. Nada mais nos resta do que nos barricarmos na nossa cidade. Mas não desesperemos! Tentaremos recuperar as reservas alimentares guardadas na matmurâ situada fora de muros, antes que os cristãos montem cerco. E rezemos para que, mesmo depois de sitiados, tenhamos acesso aos al-hurí cavados no flanco da encosta da al-qasbâ. Não esqueçamos ainda que a maior parte dos habitantes dos arrabaldes procurou refúgio dentro da cidade, assim como aldeões das redondezas, e muitos deles trouxeram animais de criação consigo. Tenhamos fé! Não há força senão em Alá, o Alto, o Magnífico! Se for Sua vontade que resistamos aos invasores, salvando a nossa cidade, assim acontecerá! Arrasada pelos acontecimentos, Aischa só tinha uma certeza: a vida, como ela até àquele momento a conhecera, desaparecera. Como se a sua mãe, ao morrer, a tivesse levado consigo». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT