sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «Atenta, pois, nisto: o perigo de nos querermos ou nos negarmos. Tu homem dono que me cavalga ou o pretende e eu que te pareço seguir nesse jogo, consentir nele»

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Novas Cartas Portuguesas. Ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores

(…)
Primeira Carta II
«Venceste, digo. Logo sou eu que te venço e tu perdes, pois confiado na vitória esqueces a vigilância sobre mim, que te examino. Friamente? Que outra maneira tenho de examinar as coisas, os outros: com toda a minha paixão? Aquela alimentada pelo simples prazer ou dor que me dá senti-la. Assim te procuro, te uso, te escrevo; porém as palavras não são elos, nem pontes, nem laços a desatar na solidão das salas. Em salas nos queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso súbito rasgando as vestes e montando a vida como se machos fôramos, dizem. De imediato então nos querem tomar pela cintura, em alvos lençóis de cama se necessário, e filhos. Que mãos nos galgam as carnes a fim de retomarem a posse, impondo-nos matriz de dono, porque dano causamos na recusa e menstruo será o estigma que eles tomam por feminina causa de nos exigirem a vontade e silenciarem o gesto com que nos despimos ou negamos para nosso próprio proveito e palavra dada a nós mesmas. Direito conquistámos, também, de escolher vingança, já que vingança se exerce no amor e amor nos é dado de uso: usar o amor com as ancas, as pernas longas que sabem, cumprem bem o exercício que se espera delas. E eis novamente em tema o exercício, como se de paixão se tratasse e vingança fosse de amor uma das justiças. Para que o exercício da justiça nos coubesse às três, dado de amor, somente, talvez por defesa ou atenção a tudo. Como Maina sagraremos dessa crua distância, o direito ao absurdo dos demais e seu. Saciadas estaremos algum dia. Pergunto: daquela voraz saciedade em que nos pomos? Desembuçadas iremos, embora saibamos que isso nos arrasta às ameaças, ao simples maldizer aceso com a madeira dos usos e da raiva. O que nos restará então de nós depois desta aventura? A freio nos quererão domar e a rédea curta. Mas de onde nossa mãe dormia não nos vem sequer a fímbria desse susto; outras roupas costuramos para nossa alegria e abandono. Que o abandono é outro pressuposto, costume ou uso em roca onde se fia o gosto. Deste modo vamos construindo um azulejo: painel. Carta por carta ou palavra escrita, volátil, entregue. A nós principalmente, depois a eles; a quem nos quiser ler mesmo com raiva. E nunca o amor foi tão inventado, logo verdadeiro: este prazer que abraço se te abraço e os teus dedos, devagar, me vão correr nos braços, nas coxas, pelos seios. A que tontura me entrego e me demoro. Em que grito rasgado me debato e cresço, me acrescento e cresço, me enlouqueço e basto; ou não me basto e por isso te invento, reinvento, te faço, te desfaço em meu sustento.
Atenta, pois, nisto: o perigo de nos querermos ou nos negarmos. Tu homem dono que me cavalga ou o pretende e eu que te pareço seguir nesse jogo, consentir nele, porém, na realidade recusando-o, caminhando já em labirintos, outros, em verões tórridos, por certo, mas meus trajectos. Porque só de minha posse na verdade te importas: eu tua terra, colónia, tua árvore-sombra-programada para acalmar sentidos. Também em ti me queres de clausura, tu próprio meu convento, minha única ambição, afinal meu único deserto. Venceste, digo, e tu pensas: venci, mas estás vencido. Minha lenta viração de nada, te acrescento carta a carta. Tentando perceber de nós três todo e qualquer sequestro, da sua motivação como projecto de paixão ou já paixão em si mesma. Assim, penso, estamos nós três neste dar de mãos, nesta entrega, nesta independência nossa. Nos procuramos, vos procuramos entender porquê. Quem sabe que desmesurado anseio este, se temos não mais que um luxo, um acinte, uma avidez: pelo corpo deixo que a paixão me tome: o corpo ele próprio já essa paixão ou objecto dela, sua raiz, sua motivação, seu ócio. Como não recordar tuas ancas estreitas e jamais te dizer paixão por elas? Assim, amo partes de ti, a ti por essa causa e de mim no contentamento de as ter, me comprazer com elas. E como Soror Mariana, talvez até digamos: que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor (...). Porém, nunca de pena mas prazer nos ficamos, irmãs, sem ser por nostalgia, ou crença. Pois clausura rompemos, já rompemos. Que seria de nós sem tanto amor, pelo puro desprazer que isso nos daria». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT