«(…) O teu pai só pensa nele, Filipe Manuel, vê se te convences
disso. Ele nem os teus estudos paga, filho. Sou eu que me mato para tu andares a chumbar anos
a fio, e tu só pensas no homem, que Deus Nosso Senhor me valha! O homem, o
homem. Até parece que não foi ele que me fez. O que é que tu estás a insinuar,
Filipe Manuel? Nada, mãe. Só me espanta que tu, que até és bruxa, não consigas
ganhar a lotaria. Neste ponto da conversa a mãe de Filipe Manuel atirava-se
para o sofá a gemer, ameaçando desmaios transcendentes, e o filho abraçava-a,
com pedidos de perdão e juras de eterno amor. Desde que o marido saíra de casa,
a mãe de Filipe dedicara-se à causa espírita e aos espoliados do Ultramar. Afirmava-se
eternamente devedora do espírito do bisavô Anselmo, que lhe aparecera em
sonhos, seis meses antes do reviralho, exortando-a a sair de Lourenço Marques,
porque os turras iam ganhar. O bisavô Anselmo só não lhe contara, talvez por
falta de intimidade com a bisneta, que o marido havia de mandar vir, com o
resto das bagagens, uma mulata vinte anos mais nova do que ela, e grávida dele.
Filipe nunca quis conhecer a meia-irmã e ficava com os cabelos em pé só de
ouvir falar em esquerdas ou liberdades. Almoçava com o pai no primeiro e no
último sábado de cada mês, se tudo corresse bem. A maior parte das vezes, não
corria: os negócios estavam difíceis, o trabalho no Partido era muito, o país
mudava devagar.
Compreendes, não é, meu filho? Filipe fazia voz grossa e
dizia que sim. Pensava que com o tempo se habituaria à indisponibilidade do
pai, mas não conseguia, e o ódio às liberdades crescia-lhe na proporção directa
da saudade. Um senhor. Filipe insistia: à uma em ponto, pai. Não te atrases,
por favor. Mas ele atrasava-se sempre. Uma e meia, desastre completo: os outros
já estavam todos a almoçar, não o viam chegar no Mercedes prateado. Se ele ao
menos lhe desse a mota. Filipe estava farto de andar com o capacete debaixo do
braço. Dizia que era para as boleias, mas ninguém acreditava. Até no comboio
para o liceu, usava o capacete em vez de livros: gastam-me o músculo, que foi
feito para outras matérias. Mas precisava de grandes audiências e muita
companhia para dar aplicação aos famosos bíceps. Quando o provocavam a solo,
fazia que não ouvia, e estugava o seu passo largo de forcado imaginário.
Contava mil e cem vezes a pega que fizera a um touro bravio, numa festa
ribatejana. Esquecia-se invariavelmente de contar que o touro em questão era
uma vaca escura, e sentada. Ricardo Luz era pouco dado a narrativas, e menos
ainda a relatórios de feitos. Escondia o tronco rijo em camisas largas. Tinha
uma vulgaríssima Honda 50. A Kawasaki 750 era do João Brito, que dormia numa
cama de dossel. Os outros escarneciam-lhe
a casa barroca e o dinheiro da família.
Não tens vergonha de ser novo-rico, ó Jonas? Novo-rico, com
um pai que podia ser avô dele? E, calhando, é mesmo! João batia duas vezes as
longas pestanas, lançava-se em voo picado sobre os difamadores e restaurava em
meia dúzia de safanões a fachada da honra. Depois sacudia a poeira do blusão e
compunha os caracóis acetinados numa olhadela discreta ao espelho retrovisor.
Os setenta e cinco anos do pai não o incomodavam; a mãe ainda não atingira os
quarenta e ofuscava qualquer garota de vinte. Adoravam-se: João e a mãe faziam
um belo par. O velhote, era como se não existisse; falava sozinho, não se sabia
de quê. Só se calava enquanto preenchia cheques, e a família fazia por
multiplicar estes agradáveis momentos de silêncio. Então, o que é que se faz
hoje? Era Radar, o anão, a pôr a voz nos bicos dos pés. Nutria uma paixão funda
por Cláudia, a partir daquele primeiro instante, já lá iam dois anos. No
entanto, estaria disposto a alimentar paixões igualmente fundas por qualquer
outra rapariga, desde que fosse um bocadinho correspondido. E desde que a
garota tivesse pelo menos treze anos. Infelizmente, a única apaixonada que
recenseara festejara há pouco o décimo aniversário, usava aparelho nos dentes e
era sua prima direita. Então, pessoal? O que é que se faz?, repetia o mal amado.
Ainda por cima, as pastilhas elásticas tinham-se acabado, e
ninguém se sentia com paciência para ir lá abaixo ao Kuanza comprar mais. João
tirou o último pedaço da boca e ofereceu-o, num gesto magnânimo. Teresa corou e
aceitou. Gostava dele há cinco meses inteirinhos, com uma constância
desesperada. Lembrava-se do momento exacto em que ele lhe tinha feito aquela
festa no queixo. O sol transbordava os contornos do céu. João estava sentado na
mota e as luvas ampliavam-lhe a forma das mãos. A luz reflectia-se nos metais
da máquina, fulgia-lhe nos olhos verdes, mergulhava-o numa ilusão de celulóide.
Ela roubara de casa metade de um pão-de-ló para distribuir pelo grupo. Como de
costume, toda a gente devorou o bolo a troçar dela: Olha a Santa Teresa,
protectora dos famintos, e coisas assim. Teresa ficava triste. Parecia-lhe que
o cabelo e os olhos acompanhavam, num progressivo embaciamento, a invasão
daquela tristeza. Pedia a Deus milagres cada vez mais pequenos e profanos:
cinco centímetros a mais de altura, dez centímetros a menos de largura, um
ondeado, por ligeiro que fosse, no cabelo. Dava prendas para se tornar famosa
no coração dos outros, mas os outros eram rapidíssimos a desmontar-lhe o
engenho, numa gargalhada. Queria alcançar a sublime vulgaridade de Cláudia, que
ganhava sempre. Mas daquela vez, há exactamente cinco meses e seis dias, o João fizera-lhe uma festa no
queixo e dissera: tão querida». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações
dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.
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