Merit-Neit, a primeira faraó do Egipto?
«(…) Eis o enigma: uma mulher,
Merit-Neit, a amada da deusa Neit, possui o túmulo Y em Abidos e o túmulo 3503 em Sacara. Ora, só um faraó podia ter
este privilégio. Além disso, estas duas sepulturas são muito semelhantes às dos
outros soberanos da dinastia. O túmulo de Merit-Neit em Abidos (19 m por 16 m),
construído no fundo de um poço com paredes revestidas de tijolos, é uma das
maiores e mais bem construídas sepulturas reais desta época. Entre as paredes
de tijolos existem oito capelas de forma alongada onde estavam colocados
objectos rituais como ânforas e outros recipientes. No solo da câmara funerária
havia uma espécie de parquete e
era protegida por um telhado de madeira. Não faltavam esteias erigidas em
memória do defunto. Tanto em Sacara como em Abidos, a última morada de
Merit-Neit encontra-se rodeada de sepulturas de funcionários e artífices que
formavam a sua corte, sem esquecer setenta e sete servas, se é que podemos
confiar no relatório das escavações. Concluindo: Merit-Neit é o terceiro
faraó da primeira dinastia e o primeiro faraó do sexo feminino.
Uma objecção, porém: nas esteias de
Merit-Neit falta a representação do falcão Hórus, protector do faraó. De facto,
todos os faraós ostentavam a denominação Hórus. Cremos que a presença da deusa
Neit no nome de Merit-Neit pode paliar esta ausência. Vamos tentar compreender
porquê. Exceptuando Menes, o antepassado fundador, o primeiro faraó da primeira
dinastia foi Aha, o Guerreiro.
A sua esposa, a primeira rainha do Egipto, chamava-se Neit-Hotep, a
deusa Neit está em paz. Um faraó guerreiro, uma rainha pacífica; por certo
a expressão de um desejo de equilíbrio. Eis pois esta enigmática deusa Neit,
que presidiu aos destinos da primeira rainha do Egipto e da primeira mulher faraó. Os textos explicam-nos a razão desta escolha.
Símbolo do vento e da inundação, Neit é a imensa superfície aquática que gerou
o que existe, que criou as divindades e os seres, a grande mãe que tornou as
sementes fecundas; tudo o que nasce provém dela. Grande antepassada do começo
dos tempos, veio ao mundo por si só: foi a primeira mãe, deus e deusa ao mesmo
tempo. Andrógina, dois terços homem e um terço mulher, macho capaz de
desempenhar o papel de fêmea e fêmea capaz de desempenhar o papel de macho,
Neit criou o mundo com sete palavras. Gerando o seu próprio nascimento,
qualificaram-na como pai dos pais e mãe das mães. Sob a protecção de Neit, uma
mulher que ascenda ao poder é pois uma personalidade autónoma, tanto mais que o
próprio faraó é definido como um
poder divino cujas orientações regem a nossa vida, o pai e a mãe, único e sem
igual.
Pai e mãe: eis a natureza do
faraó. Na ordem humana, esta natureza exprime-se num casal formado pelo rei e
pela rainha. Afirma Aton, o princípio criador: eu sou Ele-Ela; de resto,
ele une-se à sua própria expressão feminina, Atumet, simbolizada por uma
serpente. Esta constatação é importante: é um casal que governa o Egipto,
análogo ao primeiro casal divino formado por Chu e Tefnut, por vezes
simbolizado por um casal de leões. Não existe nenhum templo dedicado a faraós
do sexo masculino e solteiros,
porque uma grande esposa real revela-se indispensável para celebrar os ritos e
manter a ligação entre o céu e a Terra. Em contrapartida, um faraó do sexo
feminino não precisa de marido humano, pois tem em si o princípio masculino,
como Ísis tinha Hórus. Mas continua a ser faraó, pai e mãe. As rainhas
participaram de maneira efectiva no governo do país. Longe de serem primeiras
damas apagadas e sem
consistência, desempenhavam funções de Estado e foram escolhidas de acordo com
a sua capacidade para as exercerem. Daí os textos enaltecerem tanto o seu
sentido de autoridade como a sua beleza.
Estamos longe de qualquer feminismo, pois o que é valorizado e praticado é
o papel espiritual da mulher, a sua participação activa na criação espiritual.
Após o desaparecimento da instituição faraónica, a ideia perdeu-se e podemos
falar mais de regressão do que de progresso».
In
Christian Jacq, As Egípcias, Edições ASA, 2002, ISBN-978-972-413-062-0.
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