«(…) O telefone continua a tocar.
Os passos da minha mulher são rápidos na alcatifa porque ninguém costuma
telefonar durante o dia. Dentro de si, teme que seja uma má notícia, teme que
seja uma notícia que a deite por terra, que a destrua, que a condene outra vez:
a morte. Aperta a menina de encontro ao peito e avança ansiosa pela alcatifa: o
mais depressa que é capaz. E o telefone pára de tocar. Os passos da minha
mulher perdem o sentido, abrandam e param. Na cozinha, a música de piano
continua a nascer da telefonia e é empurrada pelo vento que entra através da
janela aberta. Não queria dizer nada ao meu tio, porque queria ver o resultado
do seu entusiasmo. Ele rodeava o piano com palavras e passos que, subitamente,
mudavam de direcção. À distância, com os braços cruzados sobre o peito, eu
olhava-o e não acreditava em nada do que dizia. Na serradura que cobria o chão,
havia o desenho de uma forma irregular que era o carreiro por onde o meu tio
seguia. Num impulso, quebrou essa corrente de passos desenhados e foi buscar um
banquinho: coberto de restos de tinta e de pregos tortos: que colocou à frente
do piano. Sentou-se, levantou a tampa que cobria o teclado e percorreu-o com o
olhar. Quase comovido, disse: o teu pai iria ficar tão feliz se aqui estivesse.
Foi nesse momento que tudo
encontrou um sentido dentro de mim. O meu pai. Como um dedo sobre uma tecla a
despertar um mecanismo adormecido, compreendi. À entrada da oficina, à direita,
havia uma porta fechada, tapada pelo tempo e por cadeiras a que faltava uma
perna, por tampos de mesas e outros restos que se foram acumulando num monte desordenado.
Nesse início de tarde, eu e o meu tio afastámos tudo e, como não sabíamos da
chave, fui eu que arrombei a porta com dois pontapés na fechadura. A minha mãe
evitava falar dessa divisão fechada da oficina. Se o fazia, dizia sempre que não
havia lá nada que me interessasse. Quando essa explicação deixou de ser
suficiente, falou-me de sustos. Disse: há sustos lá dentro.
Com dez anos, essa explicação
chegava-me. Depois, passaram verões e invernos. Deixei de fazer perguntas.
Havia uma porta fechada à entrada da oficina, lentamente tapada por tábuas, por
trastes, e eu não pensava nisso. Pensava noutras coisas. Nesse início de tarde,
ficámos parados durante um momento perante essa porta subitamente aberta. Lá
dentro, a escuridão absoluta cobria todas as formas. Era como se tivéssemos
aberto uma porta sobre a noite. Diante de nós, na escuridão podiam estar campos
cobertos pela noite, ou um rio coberto pela noite, ou uma cidade inteira:
adormecida ou morta: coberta pela noite. O meu tio entrou primeiro. Deixei de vê-lo
entre sombras de sombras: um vulto entre vultos. Ele sabia os caminhos, e foram
precisos poucos passos, poucos sons misteriosos dentro da escuridão, até que,
com a manga da camisola, começasse a limpar o vidro da pequena janela coberta
de pó. Através dos seus movimentos, entraram raios de luz. Devagar, a claridade
encheu todo o vidro.
A luz deslizou pelas superfícies
de pó. Pouco se via da sujidade das paredes e o peso do tecto baixo era mais
real porque havia pianos de todos os géneros que se erguiam, sólidos e
empilhados, quase a tocarem o tecto. Encostados às paredes, havia pianos verticais
uns sobre os outros: na ordem com que o meu pai, ou o seu pai antes dele, os
tinha equilibrado. Ao centro, havia muros de pianos sobrepostos. A luz
atravessava os espaços vazios entre eles e, mesmo da porta, podia distinguir-se
o labirinto de corredores que camuflavam. E sobre um piano de cauda estava
outro piano de cauda, mais pequeno e sem pés; sobre esse estava um piano
vertical, deitado; sobre esse estava um monte de teclas. Ao lado, separados por
uma fresta que a luz atravessava, dois pianos verticais, com a mesma altura,
encostados um ao outro, suportavam um piano vertical mais robusto que, no seu
topo, segurava um pequeno piano de armário. Havia pianos encaixados de todas as
formas possíveis. Nas folgas onde não se encaixavam completamente, a claridade
atravessava teias de aranha abandonadas que seguravam gotas de água, como pontos
de brilho. O ar fresco entrava nos pulmões e trazia o toque húmido do pó
pastoso que era a única cor: o cheiro de um tempo que todos quiseram esquecer,
mas que existia ainda. O silêncio desprendia-se dessa cor clara e antiga. A luz
atravessava o silêncio. No chão, havia tampos esfolados de pianos, ao alto,
encostados a outros pianos. Em certos cantos, havia varões de metal, teclas,
pedais e pernas de piano presas umas às outras com arames. Através do espaço
entre dois pianos, a partir da pequena janela finalmente luminosa, o meu tio
olhava-me com um sorriso. Quando fixei directamente o seu rosto, sorriu mais,
saltou para o chão com um estrondo das botas e desapareceu entre os pianos. Entrei,
escolhendo o lugar onde pousava cada pé, como se temesse alguma coisa que
desconhecia». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora,
Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
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