domingo, 21 de janeiro de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «No rosto de um amigo verdadeiro um homem vê, por assim dizer, um segundo eu. Acho que deve passar alguns dias sem sair da faculdade»

 Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ansiosa para recuperar nosso tom descontraído, ri e falei: eu não ficaria nada espantada se fosse um dos meus alunos preguiçosos... James encarou-me, sério. Não estou vendo graça nenhuma nessa situação. Foi escolhida como alvo, e não estou falando de um trote universitário qualquer. Não se esqueça de trancar a porta hoje à noite.
Ainda chovia quando James me acompanhou até aos meus aposentos do outro lado do pátio, ambos nos esquivando com cuidado das poças escuras na calçada. Era a primeira vez que ele me levava a casa; pelo menos esse agradável desdobramento eu teria que agradecer ao sr. Ludwig. Então, Morg... Ele ergueu um braço para me proteger da chuva quando parei para apanhar a chave. Acho que deve passar alguns dias sem sair da faculdade. Pelo menos não sozinha. Nunca se sabe... Encarei-o, sem conseguir acreditar na sua sinceridade. Deixe de ser ridículo. Se quiser sair, ligue-me que eu vou convosco, completou ele, com a chuva a pingar dos seus cabelos e a escorrer pelo seu nobre rosto. Não foram só as palavras: o tom grave da sua voz penetrou fundo nos meus ouvidos e reverberou nas cavernas de minhas esperanças hibernadas. Ávida por mais, cravei os olhos nos dele..., mas a chuva e a escuridão nublaram o momento. Após uma pausa constrangida, por fim consegui responder, tensa: é muita gentileza sua. Que parvoíce, retrucou James, no tom casual de sempre. Temos que tomar conta de você, não é? E ele afastou-se com as mãos nos bolsos, assobiando uma melodia alegre, enquanto eu me recolhia aos meus aposentos. Ou, melhor dizendo, ao apartamento luxuoso e mobiliado com bom gosto que tecnicamente não era meu, mas do distinto professor Larkin, que, para minha sorte, fora convidado a passar o ano em Yale. Eu não fora a única candidata à vaga de um ano que surgira com a sua ausência, mas eu era mulher, e o corpo docente da faculdade carecia havia muito dessa variedade específica de pessoa. Ou pelo menos fora esse o argumento usado por Katherine Kent para convencê-los a contratarem-me.
Eu não recebia o mesmo salário do professor Larkin, mas, ao assumir o seu cargo, pude abandonar o meu apartamento húmido e mudar-me para o interior da faculdade. O único, porém, era a carga de trabalho. Os meus dias eram tão abarrotados de orientações que quase não sobrava tempo para as minhas próprias pesquisas. Além disso, a menos que eu publicasse uma lista quilométrica de artigos novos e interessantes, com certeza não haveria um cargo permanente à minha espera no final do ano e eu teria de voltar ao meu porão na sinistra Cowley Road para distribuir o meu currículo sem o menor ânimo e espantar camundongos do meu café da manhã. Enquanto enchia a chaleira para fazer um chá antes de ir dormir, fiquei pensando nos acontecimentos do dia e acabei, como era de esperar, com a cabeça no sr. Ludwig. Em poucos minutos, aquele estranho homem havia-me apresentado um ofuscante rol de tentações: glória académica, aventura e dinheiro suficiente para comprar seis meses de liberdade e me dedicar apenas à minha pesquisa. Quem sabe até conseguisse encaixar uma ida a Istambul para procurar Grigor Reznik pessoalmente e convencê-lo a deixar-me ler o Historia Amazonum, único documento original sobre as amazonas ao qual eu não tivera acesso. A minha cabeça fervilhava diante das possibilidades.
Em troca, porém, o sr. Ludwig tinha pedido uma semana do meu precioso tempo e, mesmo que eu tivesse sido doida o suficiente para considerar a sua proposta, não havia como justificar essa ausência, estando apenas um mês no cargo novo. Teria sido outra história se ele me tivesse mostrado algum documento oficial carimbado e assinado, dizendo com precisão o que a sua fundação estava pedindo para fazer e como aquilo ficaria incrível no meu currículo..., mas, do jeito que o convite fora feito, era tudo vago e arriscado demais. De facto, como tanto Katherine Kent quanto James tinham deixado bem claro durante o jantar, seria preciso ser louca da cabeça para apanhar um avião, rumo ao desconhecido. Se ao menos o sr. Ludwig não tivesse dito a palavra mágica. Amazonas. Era óbvio que ele sabia da minha obsessão académica por esse tema, do contrário sequer teria falado comigo. Mas como interpretar a sua afirmação de que eu estava ansiosa por uma prova de que as amazonas tinham mesmo existido? Ele não podia saber quanto eu estava certa nisso. Ou podia?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT