Novas
Cartas Portuguesas. Ou de
como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos
outros legítimos superiores
(…)
Segunda Carta II
«Conto-vos, entretanto, a
história da Mãe dos Animais, mito de uma tribo de índios da América do Norte, e
que paixões nostálgicas e sem remédio terão inventado os índios nas suas
reservas, morrendo aos poucos, e os seus poços de petróleo, às vezes, e seus fatos
usados pelos hippies, e sua paixão agressiva, agora, na prisão de Alcatraz. Mãe
dos Animais foi a mulher abandonada pela sua tribo, que se dispunha a fazer uma
migração difícil, na altura em que ela paria; a mulher ficou para sempre
errando nos bosques, ensanguentada e medonha, Mãe dos Animais, protegendo-os
dos caçadores; e o caçador que a veja, com o susto, tem uma erecção, e a Mãe
dos Animais viola então o caçador, concedendo-lhe a seguir um sucesso infalível
na caça. E lembro-me ainda, bastante mal, da história do homem que encontrou uma
semente debaixo da presa dum javali, e plantando a semente dela nasceu um
coqueiro; e tendo o homem ferido a sua mão, o seu sangue caiu sobre a flor, e
da flor ensanguentada nasceu uma rapariga, que foi dançar à praça pública, onde
os homens da aldeia a mataram, tendo-a enterrado no sítio onde dançava; a deusa
que protegia aquela gente retirou-se então para trás das estrelas, e passou a recusar
o seu auxílio. Lembro-me apenas destas coisas, sem nomes nem detalhes, mas
lembro aquilo que me interessa, sem dúvida, e pergunto-me se a Mãe dos Animais
se vinga protegendo os animais, violando os caçadores ou dando a estes sucesso
infalível na caça; e pergunto-me quem destruiu a rapariga que dançava, se
aqueles que a mataram, se o outro que dizia tê-la gerado do seu sangue numa
flor.
Pergunto-me, enfim, sendo a
força-paixão da Mãe dos Animais o seu errar pelo tempo, qual o seu exercício
protegendo os animais, se nostalgia do mundo ou vingança aos homens, violando
os caçadores, se vingança ao mundo ou nostalgia dos homens, dando sucesso na
caça, de si ou para si; sendo a dança a paixão da rapariga, contra quem ou o
quê. Será desnecessário acrescentar que o meu exercício é o da vingança; que
quem está ferido não se recolha, antes despeje o seu sangue no mundo. Porque o
objecto da paixão é mesmo pretexto, pretexto para nele ou através dele,
definirmos, e em que sentido, o nosso diálogo com o resto. Vejamos: o que nos
resta é o mundo; e o tema é a paixão. Mariana no convento, quer ir, quer
cindir-se; chega o cavaleiro, e Mariana pede-lhe boleia, leva-me até além, até
dentro de mim própria; Mariana monta o cavaleiro. Mais adiante, diz o cavaleiro
deixo-te aqui; Mariana concorda. E aí fica, faz o seu inventário, a sua circum-navegação,
sempre sonsa, considera, meu amor, até que ponto nos levou a tua loucura,
Mariana sonsa e por isso limitando-se, acabam-se as suas paragens e a sua
trajectória, Mariana tem que regressar. Qual o transporte de volta? Ainda o
cavaleiro, fazendo o caminho às arrecuas, e Mariana sempre a fazer-se distraída
como quem só escreve cartas, mais nada, afinal não me levaste a parte nenhuma, cavaleiro
ingrato, fugiste para França e eu aqui estatelada neste convento. Mariana
regressa ao convento, que já não acolhe menina vinda de casa de seus pais, mas
sim freira largada da viagem do seu cavaleiro. Foi este o seu objecto, seu
pretexto, e a paixão, seu pretexto, sua força de querer sair do que lhe
restava, sua passagem a outra condição; foi seu exercício essa sua lástima
agressiva, esse tom entre o lúcido, quero mais à minha paixão do que a ti, e o
translúcido, louco foi o cavaleiro, vejo-me obrigada a desistir porque a sua loucura
foi uma fraude, e Mariana não assume a sua própria loucura, quando muito a sua
marginalidade, foi seu exercício nostálgico, mas bem sabemos quanto a nostalgia
tímida é manhosa. Seria moral da história dizer-se: se a freira e o convento se
dão mal, muda-se a freira ou o convento. Mudou-se a freira? E como se muda a
freira sem mudar o convento? Com que cara fica um convento onde uma freira
escreve cartas de amor, atestando a falência de uma clausura onde entram e saem
cavaleiros franceses? Mariana, Maina, Maria, coincidência será a causa que se descobre
posterior ao efeito, e terceira mulher que entra na combinação, sem nome, e
deste exercício a três veio a necessidade de nos descobrirmos quais as letras
comuns e incomuns nos nossos nomes. De Maina, Mariana é disfarce, e o exercício
de Maina não seria um filho do cavaleiro gritando no convento, cheirando a
azedo no convento, ou Maina criando porcos no silêncio da sua cela e depois soltando-os,
grunhindo, espezinhando, pelo convento? De Mariana, Maria é raiz, e o exercício
de Maria seria a contaminação pela suspeita, trabalho quieto e de sapa, até que
em todo o pão e em todas as laranjas pesasse a suspeita de estarem envenenadas.
Maina e Maria não quereriam sair do que lhes restava, antes tratariam de o
acrescentar. Nada garantem os fantasmas, sem dúvida; e por isso aqui estamos, e
de novo». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas
Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010,
ISBN 978-972-204-011-2.
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