«(…) Não obstante, deixei-as e
vivi quase um ano mais, com a minha nobre mãe de criação, e comecei a ser de
muita ajuda para ela, pois já tinha quase catorze anos, era alta para a idade e
parecia uma mulherzinha; todavia, tomara tanto gosto pela vida elegante na casa
da senhora que já não me sentia tão à vontade como antes em minha antiga
moradia e pensava que, com efeito, era maravilhoso ser uma dama de verdade,
pois agora as minhas ideias do que era ser uma dama tinham mudado bastante, e
pensando, como disse, em como era bom ser uma dama, apreciava estar entre damas
e, portanto, ansiava voltar a morar lá. Mais ou menos três meses depois que
completei catorze anos, a minha amorosa mãe de criação, aquela mulher que eu deveria
chamar simplesmente de mãe, adoeceu e morreu; encontrei-me numa situação
deveras triste, pois da mesma maneira que não é preciso muito para pôr fim à
família de um pobre quando todos são levados ao túmulo, também, uma vez sepultada
a pobre mulher, os administradores da paróquia retiraram imediatamente as crianças
que estavam a seu cargo, a escola foi fechada e os alunos externos que a
frequentavam viram-se obrigados a ir para casa e esperar que os mandassem para
outro lugar; com relação às coisas que ela deixara, a sua filha, uma mulher casada,
com seis ou sete filhos, chegou e levou tudo consigo, e, ao remover os bens, não
acharam outra coisa a fazer senão zombar de mim e aconselhar a daminha a se
estabelecer por sua conta, se assim desejasse.
Eu estava apavorada, quase fora
de meu juízo, sem saber o que fazer, pois fora, por assim dizer, enxotada de
casa e jogada no imenso mundo, e, para piorar as coisas, a honesta anciã tinha
em seu poder vinte e dois xelins meus, que eram todo o capital que a daminha tinha
no mundo, e quando os pedi à sua filha, ela se agastou comigo, riu de mim e
disse que nada tinha a ver com aquilo. A verdade é que a boa mulher falara à
filha sobre aquele dinheiro, dizendo que estava em tal lugar e que pertencia à
mocinha, e chamara-me uma ou duas vezes para mo dar; infelizmente eu não estava
em casa e quando voltei ela já não se achava em condições de falar; a filha,
porém, depois mostrou-se honesta e me deu o dinheiro, embora no começo me tenha
tratado cruelmente.
Agora eu era de facto uma dama
pobre, e foi naquela noite que fui atirada ao vasto mundo, pois a filha levou
tudo consigo e eu não tinha para onde ir, tampouco uma côdea de pão para comer;
mas, ao que parece, alguns vizinhos que tomaram conhecimento do que se passava
apiedaram-se de mim e avisaram a senhora em cuja companhia eu estivera uma
semana, como contei acima, e ela enviou imediatamente a sua camareira para me
buscar, e duas das suas filhas vieram com a camareira sem terem sido mandadas;
fui, pois, com elas, com armas e bagagem, como se diz, e com o coração feliz,
como podem imaginar; o susto provocado por minha situação causara-me tamanho
impacto que já não queria ser uma dama, estava mais que disposta a ser uma
criada, até mesmo qualquer espécie de criada que julgassem conveniente. No
entanto, a minha nova e generosa senhora tinha melhores ideias para mim;
chamo-a generosa porque ela se excedia em tudo a boa mulher em cuja casa eu
estivera antes, até mesmo na questão de dinheiro; bem, em tudo excepto em
honradez, e digo isso porque, ainda que a minha nova senhora fosse
absolutamente justa, não devo nunca deixar de declarar, em todas as ocasiões
possíveis, que a anterior, embora pobre, era de uma honestidade absoluta, como
não pode haver maior». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A Vida
Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN
978-972-104-443-2.
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