domingo, 28 de janeiro de 2018

A Filha do Conspirador. Philippa Gregory. «Margaret estende o vestido sobre uma cadeira, para ser empoado e escovado no dia seguinte, e Isabel veste a camisola, permitindo, em seguida, que Margaret penteie e trance os seus cabelos»


jdact e wikipedia

Torre de Londres. Maio de 1465
«(…) Eu sou a rainha Anne da Inglaterra. O rei Eduardo me escolheu. Ele nunca faria isso, você é a mais nova, disse Isabel. Ele escolheu! Ele escolheu! Sinto meu humor mudar e sei que vou estragar a nossa brincadeira, mas não posso suportar dar precedência a ela mais uma vez, mesmo quando se trata de uma brincadeira em nosso quarto. Nós duas não podemos ser rainhas da Inglaterra ao mesmo tempo, diz ela de maneira bastante razoável. Você pode ser a rainha da França. A França é simpática o suficiente. Inglaterra! Eu sou a rainha da Inglaterra. Eu odeio a França! Bom, você não pode ser rainha da Inglaterra. Eu sou a mais velha. Eu escolho primeiro, eu sou a rainha da Inglaterra e Eduardo está apaixonado por mim. Fico muda de raiva diante do hábito de Isabel de reclamar o seu direito sobre tudo, reforçando de repente o facto de ser mais velha e transformando, de súbito, uma brincadeira alegre em animosidade. Bato o pé, o meu rosto enrubesce com o meu mau humor, e sinto lágrimas quentes nos meus olhos.
Inglaterra! Eu sou a rainha! Você sempre estraga tudo porque é uma bebezinho. Ela se volta para a porta quando esta se abre atrás de nós. Margaret entra no quarto e diz: é hora das duas estarem dormindo, miladies! O que fizeram com as suas mantas? Isabel não me deixa…, começo a dizer. Ela está sendo má… Não importa, interrompe Margaret. Para a cama. Podem dividir o que quer que seja amanhã. Ela não quer dividir! Engulo lágrimas salgadas. Ela nunca quer. Nós estávamos brincando, mas então… Isabel dá um breve sorriso, como se a minha mágoa fosse cómica, e troca um olhar com Margaret, como se dissesse que o bebé está fazendo birra mais uma vez. Isso é demais para mim. Solto um gemido e me jogo de bruços na cama. Ninguém se importa comigo, ninguém consegue ver que estávamos brincando juntas, como iguais, como irmãs, até que Isabel reivindicou algo que não era seu. Ela deveria saber que tinha de dividir. Não é certo que eu tenha de ceder sempre, que eu seja sempre a última. Não é certo!, digo com a voz entrecortada. Não é justo comigo! Isabel vira-se de costas para Margaret, que desamarra o vestido dela e o abaixa para que a minha irmã possa despi-lo desdenhosamente, como a rainha que ela fingia ser. Margaret estende o vestido sobre uma cadeira, para ser empoado e escovado no dia seguinte, e Isabel veste a camisola, permitindo, em seguida, que Margaret penteie e trance os seus cabelos.
Levanto o meu rosto enrubescido do travesseiro para assistir à cena, e Isabel olha de relance para os meus grandes olhos trágicos e diz bruscamente: deveria estar dormindo. Você sempre chora quando está cansada. É uma criancinha. Não deveriam tê-la deixado ir a um jantar. Ela olha para Margaret, uma mulher de 20 anos. Diga para ela. Durma, lady Anne, recomenda Margaret delicadamente. Não há motivo para continuar com isso. Eu viro-me de lado e volto o meu rosto para a parede. Margaret não deveria falar comigo assim; ela é dama de companhia de minha mãe e nossa meia-irmã, e deveria tratar-me de forma mais amável. Mas ninguém me trata com respeito algum, e minha própria irmã odeia-me. Escuto a cama ranger quando Isabel se deita ao meu lado. Ninguém a obriga a dizer as suas preces, ainda que ela certamente vá para o inferno. Boa noite, durmam bem, Deus as abençoe, diz Margaret. Ela apaga as velas e sai do quarto.
Estamos a sós no quarto à luz da lareira. Sinto Isabel puxar as cobertas para o seu lado e permaneço imóvel. Pode chorar a noite toda se quiser, mas eu ainda serei a rainha da Inglaterra e você não, sussurra ela com uma malícia cortante. Eu sou uma Neville!, digo em voz alta. Margaret é uma Neville, argumenta Isabel. Mas ilegítima. A filha bastarda do pai. Então ela nos serve como dama de companhia e vai casar-se com algum homem respeitável, enquanto eu vou-me casar, no mínimo, com um duque rico. Agora que estou pensando nisso, acho que você também deve ser ilegítima, e terá de ser minha dama de companhia. Sinto um soluço subindo pela garganta, mas cubro a boca com as mãos. Não darei a ela a satisfação de me ouvir chorar. Abafarei os meus soluços. Se pudesse parar de respirar, eu o faria, e então escreveriam para o meu pai para lhe dar a notícia de que eu estava fria e morta, e ela se arrependeria por eu me ter sufocado por causa de sua crueldade». In Philippa Gregory, A Filha do Conspirador, 2012, A Guerra dos Primos, volume IV, Civilização Editora, 2013, ISBN: 978-972-263-519-6.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT