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de wikipedia
O
contrato da carne
«(…) Formavam-se imensas aglomerações
diante das vendas e principalmente dos açougues. Os baienses preferem vender o
boi no sertão, disse Tenório, pois lá custam por cabeça de quinze a trinta
oitavas de ouro. Aqui só conseguem de três a cinco. Além do que, para trazer
uma boiada ao Rio de Janeiro demora-se às vezes dois anos, enquanto que pelo
São Francisco chega-se às Minas em apenas um mês. Vamos acabar comendo apenas
carne de baleia, como nos primeiros tempos. Ninguém respeita o decreto da Coroa
que estipula duzentos escravos anuais para serem vendidos nas Minas, os preços
lá são muito melhores, não se vende mais nada por aqui, a não ser que um tonto
se disponha a pagar como se fosse um minerador. Isso quer dizer que dentro de pouco
tempo estarei arruinada? Tenório suspirou, fazendo um gesto com as mãos que
significava impotência diante do irremediável. Não há nada a fazer, dona Mariana.
Ela levantou-se num ímpeto. Alguma coisa pode ser feita. Vosso primo talvez
possa fazer algo por vós, disse o amanuense. Ao final, ele é o governador. Dom
Fernando? Não quero dever-lhe nada. Se eu pudesse ajudar-vos... Tenório andou
pela sala, pensativo. Então, disse Mariana, tentando convencer a Tenório e a si
mesma, se meu pai tem lavras nas Minas Gerais, casa, escravos, arrobas de ouro,
retornarei rica. Poderei adquirir os doze cavalos malhados de Augusto para
atrelá-los à minha estiva espanhola. Mariana devolveu ao amanuense o maço de
folhas. Explicai-me o que está escrito nesses papéis. Enquanto Tenório
decifrava as contas em voz alta, explicando os gastos, justificando as dívidas,
trocando em números a ruína, Mariana andava de um lado a outro pensando no pai.
Teria ele lhe perdoado? Quando partira, dissera-lhe que a deserdaria, que ela não
era mais sua filha, que se tornara indigna de usar o nome da família.
O amanuense humedecia na língua a
ponta do dedo antes de passar a página. Ele não podia estar roubando nas
contas, pensou Mariana, mas talvez a bebida consumisse todos os seus esforços. Mês,
Abril; balanço, mil e um; saldo positivo, seis contos de réis. Ajuste no preço
de sete mil para sete mil e quinhentos réis. Isso significa; senhor Tenório. Ele
parou com a leitura. Achais que ele me perdoou? Não posso afirmar, senhora. Vede
isso aqui, três cavalos doentes. Gastos com estrebaria, selas. Nenhum cavalo
vendido em Maio. Moscas no estrume. Será que vou encontrá-lo ainda vivo? Já vos
decidistes? Pensai bem, senhora. De
que servem as viandas se não nos engordam?
Tenório
saiu. No pátio, conversou rapidamente com um escravo e descobriu que Valentim
descera pela encosta meridional do morro do Alto, em direcção à zona agrícola
do sul. Presumiu, imediatamente, onde o rapaz podia estar hospedado. O
amanuense desceu a ladeira do Poço do Porteiro. Ao longe, viu um cavaleiro a
trotar para o Cara de Cão, uma capa preta voando, a extremidade da arma
iluminada pelo sol, o chapéu redondo à cabeça. Seguiu nessa direção. As botas
de Tenório afundavam nas areias húmidas e fofas da praia; ele ofegava e suava. Para
subir o morro teve que parar e descansar muitas vezes. O Cara de Cão, uma nesga
de terra à entrada da barra, com edifícios velhos, uma ermida, guaritas,
casa-forte, dava vista para uma grande porção da baía de São Salvador do Rio de
Janeiro. Tenório parou à entrada de um edifício onde estava amarrado um cavalo
com arreios de corda e mantas no lugar da sela. Maior e mais alta que as outras,
a casa tinha as janelas todas fechadas e ramos na porta. Um lugar que Tenório
conhecia muito bem. Entrou. Na sala havia uma rede, uma arca, uma imagem de
Jesus crucificado, um candeeiro, um bufete, uma mísula, tamboretes. O chão era
liso, varrido. Meretrizes, negras ou mestiças, em volta de uma mesa jogavam
cartas de baralho. Tenório olhou uma a uma, rosto após rosto. Tinham algo de
cansaço e tédio. Ao ver Tenório, uma delas sorriu, zombeteira. Olhai quem está
aí, ela disse. As outras voltaram o rosto para ele. Que os demónios me levem, pois
sou eu mesmo. Elas se desinteressaram e voltaram a jogar. Tenório aproximou-se
de uma mulher bonita, de olhos amargurados, sentada numa cadeira taxeada, ao
fundo da sala. Quero falar contigo, disse ele. Sem dinheiro novamente? Tenho
isso aqui, Tenório mostrou umas moedas. Ela deu uma gargalhada, revelando a sua
garganta, a língua dentro da boca. Parou de rir tão subitamente como começara e
pegou nas moedas. Quero saber sobre um viajante que está hospedado aqui, disse Tenório».
In
Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991,
ISBN 978-857-164-190-7.
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