«(…) Marcharam ao longo do rio, que, ao contrário do Douro, não parecia ter pressa em se juntar
às águas do oceano. Corria tão calmo e espraiado, originando um leito tão
extenso, que se diria espreguiçar-se ao sol. Junto à margem existiam salinas e
Konrad admirava as plantações espalhadas pelas colinas à sua esquerda: searas,
vinhas, oliveiras, para não falar dos pomares de laranjas, limões, figos e
romãs. Também se viam pastagens, mas poucos animais. As aldeias, os campos e as
salinas estavam abandonados, a maior parte dos aldeões procurara abrigo dentro
das muralhas de Lusbuna. Konrad ouvia expressões de entusiasmo à sua volta: que
região tão fértil! E está tudo à mão de semear. O cerco seria uma brincadeira.
Konrad começou a inquietar-se. O que estava a acontecer aos homens que,
momentos antes, mal podiam esperar a partida? Do cimo de um cerro, avistaram o
lado ocidental de Lusbuna, com o seu arrabalde incrustado nas rochas que
serviam de alicerce às muralhas. As casas deste bairro estavam construídas de
maneira a formar um conjunto hermético, coladas umas às outras, sem aberturas
para o lado exterior. As muralhas da cidade desciam em socalcos, desde o ponto
mais alto, a norte, onde dominava a torre quadrangular
da alcáçova, até à margem do Tejo. Torres mais pequenas, todas quadradas,
reforçavam as muralhas em vários pontos. No topo noroeste dos muros da
alcáçova, um pano de muralha prolongava-se pela encosta abrupta, terminando
numa torre, que delimitava e protegia o arrabalde.
Nas
ameias, entre os merlões quadrados, adivinhavam-se as sentinelas mouras, mas os
cruzados encontravam-se fora do alcance dos seus tiros de besta, pois uma vasta
e verde pradaria separava-os da cidade. Essa pradaria era atravessada por um
curso de água, aos pés do arrabalde, que a norte se dividia em duas ribeiras,
rodeando o sopé de uma colina. Para sul, alargava-se num esteiro, juntando-se
ao Tejo. A foz do esteiro parecia ser um porto de abrigo e nos seus areais
havia um estaleiro, mas ninguém trabalhava nas embarcações, que jaziam
abandonadas. Era difícil de dizer quanta gente ainda se encontrava no
arrabalde, com as casas assim construídas, em jeito de muralha. Ainda junto à
foz do esteiro, no extremo sudoeste da cidade, avistava-se uma grande torre
albarrã, adiantada algumas jardas das muralhas e a estas ligadas por um
passadiço. O pano de muralha junto ao porto fundeava em terreno baixo, chegava
quase ao rio, e dava a ver o casario
de Lusbuna, que se distribuía pela colina. Konrad e os outros quedaram-se
boquiabertos. Esta cidade era bem diferente das que eles conheciam, em que a
maioria das casas era feita de madeira e onde, durante quase todo o ano,
reinava a humidade, o frio e a escuridão. Lusbuna parecia ser feita de brancura
e de luz. As paredes caiadas reflectiam a luminosidade do sol e a grande
mesquita, a última construção que se avistava, antes de a muralha engolir a
cidade baixa, ostentava sete cúpulas cobertas de telhas vidradas a verde, a cor
do Profeta Maomé. Também o minarete adjacente, forrado a azulejos da mesma cor,
cintilava ao sol.
Toda
aquela luminosidade atraía Konrad de uma maneira irresistível. A cidade, à qual
ele tanto desejava virar as costas, parecia enfeitiçá-lo, querer engoli-lo... Konrad
deixou de ouvir as conversas excitadas dos seus companheiros e foi descendo a
colina, como que em transe, até chegar à planície verdejante. Os seus olhos
fixaram-se numa grande Porta, rasgada numa das torres quadradas que guarneciam
as muralhas, nas imediações da mesquita. A esquerda desta Porta, começava o
arrabalde e, à direita, estendia-se, até à torre de vigia na ponta sudoeste,
mais um pequeno bairro, na zona ribeirinha. De repente, Konrad teve a impressão
de que as grossas portadas de madeira chapeadas em ferro se abriam! Devem ser
brincadeiras deste sol diabólico, pensou, enquanto piscava os olhos. Sentiu
necessidade de refrescar as têmporas e caminhou até à margem do esteiro,
aproximando-se perigosamente do arrabalde, no qual ninguém sabia dizer se havia
sentinelas por sobre os terraços das casas que formavam uma verdadeira muralha.
Alheio ao perigo, Konrad humedeceu a testa e os cabelos. E logo uma brisa o
refrescou. Ainda sob o efeito daquele estranho feitiço, ele observou as
embarcações abandonadas, que flutuavam sobre as ondas suaves. Era altura de
maré cheia e o Tejo, forçado pelo oceano, despejava água no esteiro, alargando-o
cada vez mais e originando a doce ondulação, que embalava as faluas dos
pescadores. Konrad teve vontade de se deitar numa delas. Que sonhos lhe traria
aquele doce embalar?
O
esteiro galgava a areia das suas margens a olhos vistos. Numa questão de
momentos, Konrad encontrava-se enfiado na água até aos joelhos. Mas permanecia
tranquilo. Tudo à sua volta se quedava estranhamente calmo e sereno... Tornou a
observar a grande Porta, encimada por arcadas duplas que assentavam em colunas de mármore... Konrad!»
In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição
Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT