«(…) Mais sereno, estendeu-se a
todo o comprimento da cama, cobriu os dois com a manta que oferecera à rapariga
no início do Inverno e ali ficou, pensativo e confuso, apegado como ela ao
silêncio do presente e das memórias. Acaso vos lembrais de como me conhecestes
e me salvastes da morte violenta?, perguntou Raquel, momentos passados, na
ânsia de lhe mitigar o desconsolo causado pela imprevista e amaldiçoada falha. Claro
que se lembrava! Tinham decorrido sete anos sobre a data em que as suas vidas
se cruzaram. Estava-se em Abril de mil quinhentos e seis e Lisboa vivia atemorizada
pela impiedosa peste que chegava a sepultar mais de cem pessoas por dia. O próprio
rei, temendo que a doença o escolhesse e por desdita o não poupasse, deixara a
cidade meses antes, levando consigo, e como de costume, a sua vasta corte.
Primeiro instalara-se em Almeirim, depois em Santarém, e, mais tarde, sempre em
fuga ao alastramento territorial da epidemia, na Alcáçova de Abrantes. Com o
monarca, mas cada um para seu lado e pelos seus meios, fugiram também os mais
ricos, os comerciantes, a burguesia em geral, excepto uns tantos que, como
Diogo Pacheco, aceitaram a sorte com desapreço, ficando Lisboa quase toda entregue
aos pobres e aos mendigos, aos marinheiros e aos mesteirais de fracos
rendimentos económicos, às putas e aos bruxos, aos frades e aos ladrões, aos
representantes do baixo clero e à tradicional praga de criminosos.
No entanto, quer os que partiram,
quer a maioria dos que ficaram, tiveram como certo que a peste tomara conta da
cidade não tanto por qualquer trágica desventura, mas por um amargo castigo dos
céus. Pois se a morte os ameaçava, alguma razão havia. Por isso, e porque
temiam a Deus Pai, todos os dias, da alvorada ao anoitecer, centenas de homens
e mulheres deslocavam-se em peregrinação penitencial às igrejas para rezar e
pedir ao Altíssimo a salvação das almas e a remissão dos seus pecados. Até que
na manhã de quinze desse mês, domingo de Pascoela, durante uma celebração
religiosa na igreja de S. Domingos, ocorreu um episódio que haveria de marcar
para sempre as vidas de Diogo Pacheco e Raquel Aboab. Ia a missa a meio quando
um dos fiéis, no ardor angustiante das suas preces, ergueu os braços entre a
multidão e, aos berros, garantiu queacabara de ver naquele instante uma
luminescência estranha no crucifixo pendurado na parede. Foi a loucura! As
mulheres começaram a gritar, umas tantas desmaiaram, e os homens, muitos dos
quais tinham ficado na rua por falta de espaço no interior da abadia, juravam
que também eles haviam visto na cruz um sinal luminoso.
A notícia do assombro depressa se
espalhou pela cidade. De modo que se o número de crentes na celebração eucarística
daquele domingo tinha sido grande, maior foi o dos que se juntaram, à mesma
hora e no mesmo templo, dois dias mais tarde. Todos queriam ver o sinal na
cruz; todos queriam contemplar o prodígio; todos queriam ser testemunhas do
milagre. E quando, a certa hora, os raios do Sol entraram pela fresta de uma
janela e chocaram contra a pequena pedra de cristal embutida na madeira do
crucifixo, irradiando por alguns
instantes uma centelha de luz, um judeu convertido, que assistia à cerimónia,
levantou a voz e disse que aquilo não passava de um simples reflexo, casual e
sem importância. A denúncia não agradou aos crentes, muito menos satisfez o
frade dominicano que presidia no púlpito à oblação. Sumido no ódio mais
profundo, o abade apontou o dedo ao converso, acusou-o de heresia e, em estado
de descontrolada insanidade, pediu a todos que liquidassem o maldito povo
hebreu. Foi o que os devotos quiseram ouvir. No mesmo instante, a turba
atirou-se ensandecida ao homem, arrastou-o pelos cabelos até ao adro da igreja
para então, depois de espancado e de lhe arrancarem os olhos, ser lançado à fogueira,
no Rossio». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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