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Senhor Dom Miguel Payá y Rico! A voz que subia do ventre da imponente catedral
não soou bem aos ouvidos do arcebispo de Compostela. Era hora de escutar os
acordes da jubilosa alegria. Mau grado, não era a música celestial, nem os
habituais cânticos afinados que surtiam das gargantas dos clérigos da catedral
e que ecoavam nos graníticos recantos, gerando um momento místico e de grande elevação
para o espírito. Não! A voz que emergia dos fundos do sagrado templo parecia
solta de um inferno, apesar de se resumir a seis breves palavras: senhor Dom
Miguel Payá y Rico! Soaram-lhe secas, trémulas, ansiosas, amedrontadas,
misteriosas. E, além do mais, o cardeal nunca tinha ouvido Labin a tratá-lo com
toda a deferência do nome completo, fora das comunicações institucionais. Diz-me,
Labin… Nos fundos, morava novamente o silêncio. O inquieto Dom Miguel ajustou
melhor o olhar para tentar descortinar o que acontecia no subsolo. López
Ferreiro surgia debruçado sobre algo, cujo corpo tapava, ostensivamente. O
mestre de obras Manuel Larramendi e o canteiro Juan Nartallo encostavam-se a um
monte de pedras, sem entenderem o que o assustara. Labin acenava com a mão
direita, chamando Payá. Precisas mesmo que desça?! Sim, Dom Miguel! Peço que
chegue aqui, por favor! O cardeal olhou à volta. O coração batia-lhe com
pressa. Não ousou perguntar a razão do pedido do cónego, pois a sua intuição
avisava-o para não o fazer. Chamou o jovem marquês para o ajudar a descer.
Todos os outros usavam batina, o que podia atrapalhar os movimentos. Já bastava
a dele, que teve de arregaçar com as mãos. Por isso, precisava de alguém que o
amparasse. O que se passa aqui, amigos?, perguntou, numa voz abafada, logo que
tocou os fundos, depois de uma perigosa descida, através de pedras pouco seguras.
Leia esta lápide, por favor! Está escrita em latim! Labin afastou-se e colocou
o candeeiro junto à pedra escrita. O jovem marquês, instruído na língua clássica
que aprendera nas aulas do seminário, colocou-se ao lado do cardeal, e foi ele
que o amparou no desfalecimento. Quando se recompôs, olhou para as profundezas,
com um aperto no peito.
Não
pode ser!… Meu Deus, como é possível?!, resmoneou, entre dentes, lívido como a morte.
Destruam imediatamente essa pedra! A alguns metros atrás, o peregrino ergueu-se
do banco, encheu o peito de ar e esboçou o mesmo enigmático sorriso que
dirigira a Payá, na praça do Obradoiro. De seguida, ajoelhou-se, aconchegou o cão
ao seu lado, dobrou a cabeça, juntou as mãos e rezou em silêncio:
Quero
libertar e ser libertado,
quero
salvar e quero ser salvo.
Quero
criar e ser criado,
quero
cantar e ser cantado.
Dançai
todos juntos!
Quero
chorar: golpeai-me no peito!
Quero
ornar e ser ornado.
Sou
candeia para ti, que me vês.
Sou
porta para ti, quem quer que sejas tu que bates.
Tu vês
o que eu faço, não o nomeies.
Com o verbo ensinei, e com o verbo não sou iludido.
Aseconia (Santiago de Compostela)
Prisciliano
nasceu na paz da sua villa
e na turbulência do século. Foi à hora nona do oitavo dia antes dos idos de
Janeiro, o dia 6 do primeiro mês romano, de 349. Coincidia com o aniversário de
nascimento do deus egípcio Osíris, o que dava início ao ciclo anual. Entre os cristãos,
que começavam a alastrar pelo império, celebrava-se a Epifania do Senhor. Em Mediolanum,
governava o imperador Flávio Júlio Constante, filho de Constantino, o Grande. Bem
avisei Lucídio! Este não era o melhor momento para viajar! Com este frio e o
nono mês a chegar-me…, lamentou-se Priscila, pesadamente sentada na cadeira,
com os sinais do parto a transformarem-se em dores. A jovem matrona da casa era
uma mulher de cabelos dourados e magra, mas com dificuldades em se mover. Vá,
senhora, não se preocupe! Está bem entregue… Sabe disso!, sossegou-a Valéria. Vai
correr tudo bem, com a graça de Juno! E só assim poderia ser! As mãos sábias e
acostumadas da viúva de um colono da Villa Aseconia nunca haviam deixado ficar
mal uma parturiente. No exterior, as paredes do casarão rectangular que abraçava
um largo peristilo eram severamente fustigadas pela chuva intensa. Os deuses
regavam abundantemente as longínquas terras do império, a galaica finis terrae, mas o tempo era
pouco conveniente para quem viajava». In Alberto S. Santos, O Segredo de
Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
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