quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Cemitério de Pianos. José Luís Peixoto. « Mais tarde, haveria de dizer tantas coisas. Naquele momento, não soube dizer nada. Toquei a face do menino com as pontas dos dedos. Toquei a testa da minha mulher com os lábios»

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«(…) Sentia a minha mulher acordada. Poderia ter-me lembrado que faltavam poucos dias para a data que o médico tinha dito, mas lembrava-me apenas das noites em que o calor não a tinha deixado adormecer. Era o início de Setembro. Ela dava voltas impacientes na cama. De cada vez que se virava, o mundo ficava suspenso nos seus gestos porque era tudo muito lento, porque era difícil e, às vezes, parecia que era impossível. O seu corpo era grande de mais. Os seus braços tentavam agarrar-se aos lençóis. Não encontrava posição. As juntas da cama rangiam. Eu estava acordado, adormecido, acordado, adormecido. Quando adormecia, continuava meio acordado. Quando acordava, continuava meio adormecido. Nos pensamentos vagos que tinha, acreditava que era o calor que não a deixava adormecer totalmente. Estremunhado, abri os olhos quando senti as pernas quentes e molhadas, quando ela me abanou os ombros, gritando e sussurrando: acorda! Rebentaram-me as águas. Custou-me a acertar com os pés nas calças. Tentava acertar com um pé e dava pulinhos com o outro. Ela fechou-se na casa de banho. Quando bati à porta, pediu-me para ir avisar a Marta. Entrei no quarto das nossas filhas às escuras. A Marta acordou assustada. Esperei pelo silêncio até se ouvirem apenas as marés da respiração da Maria a dormir. Nesse momento, disse-lhe: a tua mãe está quase a ter a criança. Vamos agora para a maternidade. Toma conta dos teus irmãos quando acordarem. Na penumbra, os olhos da Marta escutavam-me muito sérios. Saí do quarto das nossas filhas. A Marta ficou sentada na cama. Os seus olhos eram preocupados e brilhavam. Abri a porta do quarto do Simão. Era ainda tão pequeno, e dormia. Fechei a porta devagar.
Procurei a minha mulher. Atravessei o corredor. A camioneta tinha menos de um ano e, nos últimos meses da gravidez da minha mulher, estacionava-a à porta de casa. Amparei a entrada da minha mulher na camioneta. Corri para a porta do condutor. Arranquei em segunda. Limpei as remelas com o indicador nas primeiras vezes em que parámos atrás de automóveis parados. Prestava pouca atenção ao início daquela manhã. Às vezes, a minha mulher começava a queixar-se mais alto. Então, acelerava, dava solavancos nos carris dos eléctricos, ultrapassava automóveis que apitavam, passava por semáforos vermelhos. Depois, tinha automóveis à frente e não conseguia passar. Virava-me para a minha mulher e perguntava-lhe se estava bem. Olhava para o relógio, o tempo era muito rápido. Perguntava-lhe outra vez se estava bem. Acelerava um rugido do motor sem sair do lugar, olhava para o relógio, o tempo era muito rápido. Perguntava-lhe outra vez se estava bem e, quando conseguia andar, voltava a acelerar: solavancos nos carris dos eléctricos, ultrapassar carros, passar semáforos vermelhos. Ela, no seu sofrimento, dizia-me: vai com calma.
Eu enervava-me: como é que eu posso ir com calma? Ela dizia-me: calma. E chegámos à maternidade, corri para ela, e entrámos de braço dado, eu a puxá-la, ela pesada com dores, e eu a puxá-la. Dirigi-me a uma enfermeira e, antes de conseguir dizer alguma coisa, a enfermeira disse-me: calma. E levou-a. A minha mulher virou-se para trás para me ver sozinho, com os braços e com os olhos abandonados. E esperei. Olhava para o relógio. A manhã. A manhã com o tamanho de um Verão. Toda a manhã. Olhava para o relógio. O tempo era muito lento. A enfermeira passava por mim, eu ia atrás dela e, antes de conseguir dizer alguma coisa, era ela que me dizia: tenha calma. Vá comer qualquer coisa. E eu desistia. Foi depois da hora de almoço que a enfermeira voltou a entrar na sala de espera e me disse: então, não quer ir ver o seu filho? Os meus pés deslizaram pelo chão de mosaicos, o meu corpo atravessou os corredores de paredes cinzentas e de lâmpadas quase fundidas, intermitentes, a falharem. Os meus olhos não viam nada. E entrei no quarto. De uma vez: a minha mulher deitada na cama a segurar o nosso Francisco nos braços. A sorrir com a vida. Caminhei mudo e lento até à cama. Não soube dizer nada. Mais tarde, haveria de dizer que, logo ali, tinha percebido tudo aquilo de que ele seria capaz.
Mais tarde, haveria de dizer tantas coisas. Naquele momento, não soube dizer nada. Toquei a face do menino com as pontas dos dedos. Toquei a testa da minha mulher com os lábios. O tempo não existia. Sem um instante para gastar com perguntas sem resposta, a minha mulher volta a entrar na casa de banho com a íris ao colo e, quando abre a porta do armário dos medicamentos, não quer pensar em quem poderia estar a telefonar-lhe. A íris já é pesada. A minha mulher senta-se na ponta do bidé e pousa-a no chão. À sua frente, a íris fica de pé, com a mão aberta e estendida para ela. São uma avó e uma neta. Sobre os joelhos, a minha mulher equilibra algodão, tintura de iodo, fita adesiva e um rolo de ligadura. Tem a voz delicada porque quer que a íris não chore mais. Tenta sorrir e tenta distraí-la: agora, vinhas ao hospital para te curares. Então diga lá, senhora, teve um acidente? Com os lábios apertados e os olhos muito grandes, a íris murmura gemidos magoados, quase fingidos, e estende-lhe mais a mão. Oh, vamos já curá-la. E despeja tintura de iodo sobre uma bola de algodão que aproxima da ferida». In José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT