quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «O meu desejo é tão forte, tão alto, tão urgente e tão insaciável que me basta ouvir-lhe a voz e ler-lhe os sonetos para estar certa de que é Luís Vaz»

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Violante Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Mas outras e mais prementes coisas há que agora assim me deixam: Luís Vaz esquiva-se-me sem que eu descortine a razão. Sou formosa, segura, desejável, nobre, rica, culta, que sei eu... Sou eu mesma o fim e o princípio da sua tormenta, como ele mesmo mo recita: nunca o prazer se conhece senão depois da tormenta. Já antes se me havia negado. Ainda em Xabregas, bastas vezes o exigi em minha alcova e com grande desfaçatez se me escusou: ora havia de ir acudir à madrasta, ora era Bento que descia à capital, ora, pasme-se a leviana aleivosia, não podia delongar-se, a fim de honrar um encontro com Jorge Montemor, a quem havia de mostrar umas rimas muito belas que escrevera! Isto sabendo eu que Jorge Montemor passara a Castela ao serviço da Corte de Carlos V. Pior ainda: quando com ele me cruzara no meu palácio de Xabregas, Luís Vaz cheirara-me a vinho, chegando a apresentar-se a Antoninho com um golpe fundo no rosto, feito à faca, e não consentindo sequer que mandasse chamar quem o tratasse. Sei como folgava pelas ruas antes de me conhecer, atando e desatando amores, pagando por um corpo mais do que por uma refeição condigna, desbaratando o tempo a versejar aos postigos e alpendres por meia dúzia de reais, perdendo-se em brigas com pretos e mulatos pagos por fidalgos desavindos que o alcunham de Trinca-Fortes. Talvez a minha aguda suspeita resida nesta nova prenhez que dele ocultei. O meu desejo é tão forte, tão alto, tão urgente e tão insaciável que me basta ouvir-lhe a voz e ler-lhe os sonetos para estar certa de que é Luís Vaz o maior desejo e a maior desajustada esperança que acalento nestes primeiros meses de esperanças.
Tudo me cansa..., os olhos doem-me com o tamanho deste dia que se me afigura sem fim e que ainda não vai em metade... Por mais que o senhor meu marido insista em planear a recepção a Bernardim Ribeiro, que por Sintra anda a sarar as feridas de amor pela dama que o preteriu, por mais que se anime a convidar Pedro Nunes e Damião Góis e até Francisco Holanda, que regressa à Pátria, depois de muito ter privado com o mestre Miguel Ângelo, eu já o não oiço. De nada agora me importam poetas, cronistas, matemáticos, pintores. O pensamento não me sai do corpo e o meu corpo não se separa nunca do corpo de Luís Vaz. Nem mesmo me perco já nas intrigas que por aí correm. Para sobreviver preciso do poeta... Foi nesse serão, em que não prestei qualquer atenção às praças de África, ao cerco a Diu, aos autos-de-fé  no Terreiro do Paço, que tomei uma atitude de alto risco: ia, de uma vez por todas, pôr à prova o carácter do presumido Luís Vaz.
Mandei chamar Joana, uma das mais astutas damas da rainha. Estava ali perto, nos paços de Évora. Sabia do apetite que ela tinha pelo dinheiro e que logo o desbarataria em mais um bracelete de ouro. Estava disposta a oferecer-lhe uma quantia avultada para que seduzisse Luís Vaz. Se ele caísse no engodo, matá-lo-ia; se me fosse fiel, entregar-me-ia para sempre. A coragem é quase tão contagiosa como a cobardia e eu, Violante, condessa de Linhares, sempre fui uma mulher corajosa». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                   
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