terça-feira, 23 de janeiro de 2018

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «… as cousas da Guiné, não prevê que lhe põe nas mãos esguias e hábeis a fundação e organização do Império Português. Ou pensou-o?»

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O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Percebeu que perdera, e essa é que era a verdade, a guerra. Mas não desistiria. Outras oportunidades se apresentariam... Chamou o bispo Garcia Menezes. Nada feito. A Princesa persistia, no seu tom brando, a defender a sua causa, escutando-os com um ar calmo e respeitoso. João agarrou a irmã, suplicou, ameaçou, fez tudo o que lhe foi possível. Em vão. Depois, procurando-se outra estratégia, lá se acertou que dona Joana não professasse nem vestisse definitivamente o hábito que envergara com tanto gosto. Ficaria, de momento, como irmã honorária. Deixais-me só. Estou só e abandonado! Não me amais! Estou completamente só! João chorava de raiva. Não sabia que esse era o seu destino, o dos homens grandes, o dos seres de talento, o dos que Deus escolheu para uma qualquer missão, desde a política à arte, a completa e definitiva solidão. Era muito jovem para saber. Ele que estava casado, ao afirmar à irmã a solidão que lhe invadia a alma, traduzia quase inconscientemente a verdade sobre a sua união com a mulher à qual estaria ligado toda a vida, mas que nunca seria a companheira ideal, a de caminho, a amante, aquela que preenche a nossa vida no leito e ao longo de todas as etapas que percorremos até a morte nos juntar no pó e no esquecimento. Hoje sei que aconteceu isso. No pó não sei se estarão um dia juntos porque ela ainda vive e todos nós já estamos mortos ou quase. O destino, às vezes, entretém-se a estabelecer estes laços e estes nós que em vez de ligarem as nossas vidas, pelo contrário, as desligam, partem, destroem.
O Príncipe, com o seu séquito de trinta cavaleiros, cinquenta escudeiros, quinze pajens, todos nobres, e doze não nobres, lá foi para Beja ter com a mulher ao palácio onde ela estava com a mãe, dona Beatriz, viúva do infante Fernando, e os irmãos. Depois seguiriam para Évora. Claro que o Príncipe sabia também o que significava a outra parte da sua solidão na corte do pai: ele e a nobreza dependente das benesses de Afonso constituíam dois mundos e muitos dos grandes fidalgos começavam a sentir naquele jovem de expressivos e terríveis olhos negros um mau estar que não conseguiam ainda definir, mas os importunava. Sobretudo os Braganças, que eram adorados pelo rei, e a quem João tratava com polida, talvez demasiado sóbria, delicadeza. Uma verdadeira frieza, porque os pressentia demasiado fortes para as suas concepções de poder. O jovem Príncipe lia muito, estudava Direito Romano e possuía uma concepção da realeza que hoje se espalhou por toda a Europa e que aos Braganças nem sequer aflorava a sua mente. A João sabia mal o jovem duque de Bragança, que era neto do velho assassino de seu avô, e que manifestava um orgulho principesco, deslocando-se com um séquito de servidores que emparelhava com o real e, às vezes, o ultrapassava... Era cunhado do jovem Príncipe e tinha a mania de lhe dar conselhos com um ar paternal, negligente que, sob os olhares do rei benevolente, João engolia ou fingia engolir, com dificuldade. Depois havia os outros: os Vila Real, os Valença, os Odemira, os Almeidas, os Ataídes, os Pereiras, os Abrantes..., os Albuquerques, os Noronhas. Entre os eclesiásticos, Jorge da Costa. O da era apócrifo, mas sabia-lhe bem. Ilustre homem, cultíssimo, mais tarde um verdadeiro Príncipe da Igreja, fino político mas mau, invejoso, ressabiado das suas humildes origens e o grande, um deles, inimigo do futuro Rei. Foi confessor do Rei Afonso e tudo conseguiu. Como qualquer plebeu sem grandeza de espírito suficiente era de uma ambição desmedida, cega, opressiva e o Rei tudo lhe concedeu.
O Rei entregou nas mãos do Príncipe, a patrir de Maio de 1474,os negócios da Guiné. Quando o Rei doa ao filho, e este apenas tem dezanove anos, as cousas da Guiné, não prevê que lhe põe nas mãos esguias e hábeis a fundação e organização do Império Português. Ou pensou-o?» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

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