O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Percebeu que perdera, e essa
é que era a verdade, a guerra. Mas não desistiria. Outras oportunidades se
apresentariam... Chamou o bispo Garcia Menezes. Nada feito. A Princesa
persistia, no seu tom brando, a defender a sua causa, escutando-os com um ar
calmo e respeitoso. João agarrou a irmã, suplicou, ameaçou, fez tudo o que lhe
foi possível. Em vão. Depois, procurando-se outra estratégia, lá se acertou que
dona Joana não professasse nem vestisse definitivamente o hábito que envergara
com tanto gosto. Ficaria, de momento, como irmã honorária. Deixais-me só. Estou
só e abandonado! Não me amais! Estou completamente só! João chorava de raiva.
Não sabia que esse era o seu destino, o dos homens grandes, o dos seres de
talento, o dos que Deus escolheu para uma qualquer missão, desde a política à
arte, a completa e definitiva solidão. Era muito jovem para saber. Ele que
estava casado, ao afirmar à irmã a solidão que lhe invadia a alma, traduzia
quase inconscientemente a verdade sobre a sua união com a mulher à qual estaria
ligado toda a vida, mas que nunca seria a companheira ideal, a de caminho, a
amante, aquela que preenche a nossa vida no leito e ao longo de todas as etapas
que percorremos até a morte nos juntar no pó e no esquecimento. Hoje sei que
aconteceu isso. No pó não sei se estarão um dia juntos porque ela ainda vive e
todos nós já estamos mortos ou quase. O destino, às vezes, entretém-se a
estabelecer estes laços e estes nós que em vez de ligarem as nossas vidas, pelo
contrário, as desligam, partem, destroem.
O Príncipe, com o seu séquito de
trinta cavaleiros, cinquenta escudeiros, quinze pajens, todos nobres, e doze
não nobres, lá foi para Beja ter com a mulher ao palácio onde ela estava com a
mãe, dona Beatriz, viúva do infante Fernando, e os irmãos. Depois seguiriam
para Évora. Claro que o Príncipe sabia também o que significava a outra parte da
sua solidão na corte do pai: ele e a nobreza dependente das benesses de Afonso
constituíam dois mundos e muitos dos grandes fidalgos começavam a sentir naquele
jovem de expressivos e terríveis olhos negros um mau estar que não conseguiam
ainda definir, mas os importunava. Sobretudo os Braganças, que eram adorados
pelo rei, e a quem João tratava com polida, talvez demasiado sóbria,
delicadeza. Uma verdadeira frieza, porque os pressentia demasiado fortes para
as suas concepções de poder. O jovem Príncipe lia muito, estudava Direito
Romano e possuía uma concepção da realeza que hoje se espalhou por toda a
Europa e que aos Braganças nem sequer aflorava a sua mente. A João sabia mal o
jovem duque de Bragança, que era neto do velho assassino de seu avô, e que
manifestava um orgulho principesco, deslocando-se com um séquito de servidores
que emparelhava com o real e, às vezes, o ultrapassava... Era cunhado do jovem
Príncipe e tinha a mania de lhe dar conselhos com um ar paternal, negligente
que, sob os olhares do rei benevolente, João engolia ou fingia engolir, com
dificuldade. Depois havia os outros: os Vila Real, os Valença, os Odemira, os
Almeidas, os Ataídes, os Pereiras, os Abrantes..., os Albuquerques, os
Noronhas. Entre os eclesiásticos, Jorge da Costa. O da era apócrifo, mas sabia-lhe bem. Ilustre homem, cultíssimo, mais
tarde um verdadeiro Príncipe da Igreja, fino político mas mau, invejoso,
ressabiado das suas humildes origens e o grande, um deles, inimigo do futuro
Rei. Foi confessor do Rei Afonso e tudo conseguiu. Como qualquer plebeu sem
grandeza de espírito suficiente era de uma ambição desmedida, cega, opressiva e
o Rei tudo lhe concedeu.
O
Rei entregou nas mãos do Príncipe, a patrir de Maio de 1474,os negócios da
Guiné. Quando o Rei doa ao filho, e este apenas tem dezanove anos, as cousas
da Guiné, não prevê que lhe põe nas mãos esguias e hábeis a fundação e
organização do Império Português. Ou pensou-o?» In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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