quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

As Ondas. Virgínia Woolf. «Ele estava cego como um touro, e a angústia fê-la desfalecer. O rosto pálido cobriu-se-lhe de veias vermelhas»

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«(…) Dado que é suposto eu ser demasiado delicado para os acompanhar, disse Neville, dado cansar-me e adoecer com facilidade, servir-me-ei desta hora de solidão, desta fuga às conversas, para vaguear pelas matas junto à casa e recuperar, se conseguir (indo para isso colocar-me no mesmo ponto), aquilo que senti ontem à noite, quando a cozinheira andava atarefada em volta dos fogões, e, através da porta entreaberta, ouvi a história do homem morto. Encontraram-no com a garganta cortada. As folhas da macieira colaram-se ao céu; a lua brilhou; fui incapaz de levantar os pés e subir os degraus. Encontraram-no na valeta. O sangue gorgolejou pela valeta. O rosto era tão branco como um bacalhau morto. Chamarei para sempre a esta rigidez, a esta fixidez, a morte entre as macieiras. Viam-se nuvens de um cinzento-pálido a flutuar; e aquela árvore inexorável; aquela árvore implacável com a sua casca prateada. O ondular da minha vida não tinha qualquer validade. Fui incapaz de passar. Havia um obstáculo. Não sou capaz de ultrapassar este obstáculo impiedoso, disse. E os outros passaram. Porém, todos estamos condenados pelas macieiras, por aquela árvore impiedosa que não conseguimos passar. Agora, já não há imobilidade ou rigidez; e eu vou continuar o meu passeio pelas matas em torno da casa, ao entardecer, ao pôr do Sol, quando este faz aparecer alguns pontos oleaginosos no linóleo, e os raios de luz se reflectem na parede, fazendo com que as pernas das cadeiras pareçam estar partidas. Quando chegamos do passeio, disse Susan, vi a Florrie no jardim em frente à cozinha. Estivera a lavar, e apertava a roupa contra ela: os pijamas, as camisas de dormir, as ceroulas. E o Ernest beijou-a. Ele tinha vestido o avental de baeta verde, estava a limpar as pratas; a boca parecia uma bolsa amachucada, e ele puxou-a, ficando os pijamas comprimidos contra os corpos de ambos. Ele estava cego como um touro, e a angústia fê-la desfalecer. O rosto pálido cobriu-se-lhe de veias vermelhas. Agora, e muito embora fossem pratos de pão com manteiga e copos de leite à hora do chá, vejo uma fenda na terra, e nos ares elevam-se colunas de vapor quente; a chaleira ruge da mesma maneira que o Ernest rugiu, e, muito embora os meus dentes se enterrem no pão com manteiga e vá bebendo o leite adocicado, sinto-me tão apertada como aqueles pijamas. Não tenho medo do calor, nem mesmo do gelo do Inverno. A Rhoda sonha, chupando uma côdea de pão embebida em leite; com um olhar vítreo, o Louis fita a parede em frente; o Bernard esfarela o pão até o transformar em migalhas, às quais chama pessoas. O Neville, com aqueles modos arruinados e definitivos, já acabou. Enrolou o guardanapo e enfiou-o na argola de prata. A Jinny faz girar os dedos na toalha, tal como se estivessem a dançar ao pôr do Sol, a fazer piruetas. Mas eu não tenho medo nem do calor do Sol nem do gelo do Inverno.
Agora, disse Louis, todos nos levantamos; todos nos pomos de pé. A miss Curry abre o livro negro no harmónio. É difícil não chorar quando cantamos, quando pedimos a Deus que nos proteja durante o sono, chamando-nos criancinhas a nós mesmos. Quando estamos tristes e a tremer de apreensão, é bom cantarmos juntos e apoiarmo-nos uns aos outros, eu contra a Susan e a Susan contra o Bernard, de mãos dadas, com medo de muitas coisas, eu, da minha pronúncia, a Rhoda, das contas; contudo, cheios de vontade de vencer. Subimos as escadas como se fôssemos póneis, disse Bernard, a bater os pés, aos pulos, uns atrás dos outros, prontos a entrar na casa de banho. Lutamos, brigamos, saltamos para cima e para baixo nas camas duras e brancas. Chegou a minha vez. Entro». In Virgínia Woolf, 1931, colecção Mil Folhas, Relógio d’ Água, 2002, 2015, ISBN 978-989-641-526-6.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT