quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

No 31. João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Estávamos em Abril, a 25 de Abril, e o Rei Afonso resolveu dar o poder ao filho para reger, governar e proteger o reino»

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O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Minha mãe chegou a casa acompanhada por uma amiga, mulher de um mercador que tinha o seu estabelecimento na Rua Nova, e disse, esbaforida, sentando-se sobre a arca da roupa: está tudo louco. É a guerra. Rainiero, que viera buscar dois rolos de papel grosso, a oficina do pai ficava perto, protestou: como pode ser? Não há guerra com Castela há..., há. muitos anos! Mas era verdade. Jorge Costa participara nos preparativos diplomáticos e nas conversações prévias para a empresa, já depois de lhe ser concedida a abadia de Alcobaça, e o mundo não se encontrava em bom estado também, o resto do mundo. Por Inglaterra, Eduardo IV apoiava o primo do nosso Rei, Carlos de Borgonha, e desembarcava em Calais não tardaria muito. Depois, como o filho de dona Isabel não chegou a horas ao encontro, não perdeu tempo. Fez as pazes com o raposão do Luís XI de França, em Piquigny. E, durante o acto de assinatura de paz, um aventureiro português que eu cheguei a conhecer, Edward Brampton, aliás o judeu Duarte Brandão, por 1á assistiu. Existem no mundo homens sem raiz e sem pátria que participam em tudo sem pertencerem a partido nenhum...
Estávamos em Abril, a 25 de Abril, e o Rei Afonso resolveu dar o poder ao filho para reger, governar e proteger o reino. O Príncipe iria, pela primeira vez, já homem feito, com vinte anos, mostrar o seu valor nas rédeas do governo e no campo militar, não como em Arzila, mas como estratego e homem de diplomacia. Em Maio, já nos derradeiros dias desse mês, Afonso partiu para a fronteira com vinte mil homens de cavalo e infantaria. Entretanto, em Lisboa, a 18 de Maio, nascia-lhe um neto, Afonso. Mais uma peça no tabuleiro para ser movida pelo pai, então um orgulhoso jovem, Príncipe e progenitor de estirpe, no futuro jogo do poder peninsular. Afonso limitava-se a defender as pretensões de sua sobrinha, filha de Henrique IV, e os seus interesses como futuro senhor das duas coroas. Henrique IV era um homem pesadão, enorme, barrigudo, louro, de olhos muito claros e pele branca de leite. Olhava as pessoas com os olhos esbugalhados, salientes, redondos, espantados, como se as visse sempre pela primeira vez. Casou pela segunda vez, por questões políticas, com uma das mais belas mulheres do seu tempo, Joana, filha mais nova de Duarte de Portugal e de Leonor de Aragão e Transtâmara. Dona Joana vivera com a mãe no exílio de Toledo e era a mais nova, querida e pouco sensata irmã de Afonso V. Morena, gaiata, alegre, azougada, vestindo luxuosamente, mostrando, sempre que podia, os seus encantos a que nenhum homem resistia, entrou mal e saiu pior ainda do leito daquele marido que não amava mulheres, diziam as más línguas, e se as amava pouco ou nada conseguia porque (de novo as viperinas informações da Corte) era impotente.
Por debaixo daquela barriga mole não existia nada a não ser gordura e um pénis de criança e a verdade é que, após catorze anos de casamento com Branca de Navarra não houvera filhos e o casamento fora considerado nulo. E só ao fim de sete anos dona Joana teve aquela filha muito parecida com todos menos com o pai. Ora este, embora as suas relações com a Rainha tivessem sempre sido excelentes, tinha certos amigos de preferência, a quem tudo oferecia e as más-línguas coruscavam pelos corredores envenenando o bom ambiente que deveria ter a Corte. Possuía os seus validos e, de entre eles, precisamente o belo e vicioso Beltran de la Cueva. Quando as relações entre o valido e a Rainha se tornaram mais íntimas e ela engravidou, obviamente que todos se prontificaram a atribuir a paternidade da pobre criança nascida a Beltran e como a Rainha persistia com a sua costumada leviandade, pelo menos aparente, porque à política e aos interesses da facção oposta de Isabel e de Fernando de Aragão convinha que essa aura de malignidade e de barreguice envolvesse a Soberana, todos encontraram para a criança tantos pais quanto os gostos. A aleivosia de muitas das mulheres da Corte, invejosas da bela Joana de Portugal, ajudou sempre a criar mau estar à Rainha. A pequenina neta de Duarte esteve noiva de várias cabeças coroadas, de João de Portugal, aos três anos, de Luís XI de França, do duque de Berry, que morreu envenenado, talvez pelo irmão... Henrique de Castela, com a sua estúpida cabeça a estoirar de dúvidas que só ele certamente poderia conhecer, chegou a negar a paternidade da Princesinha. Depois, já doente, em Madrid, declarou a Princesa sua filha legítima e única herdeira e pediu ao Rei Afonso de Portugal que aceitasse o governo dos Reinos de Castela e os defendesse se quisesse casar com a Princesa. Entretanto, finava-se o pobre e inútil Soberano e a jovem Beltraneja, infeliz desde o berço, nunca se libertando do nome que os inimigos dos pais lhe deram e da desonra dessa origem, ficou entregue aos cuidados do marquês de Vilhena e do arcebispo de Toledo. Como político, Afonso de Portugal não valia nada. Como cavaleiro, era exímio defensor dos princípios sublimados de generosidade e elevação espiritual postulados pelas leis da cavalaria antiga». ?» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

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