«(…) Em frente à porta principal
do solar de João Afonso Telo, no terreiro enlameado pelo derretimento da geada
batida pelo sol daquela manhã de fim de Outubro, começaram a aglomerar-se,
ainda cedo, dezenas de convidados para o casamento de Leonor Teles Menezes com
João Lourenço Cunha. Os homens, quase todos enrolados em ricos mantões talhados
à moda da antiga corte de São Luís, rei de França, apresentavam-se de capuzes
na cabeça, de sapatos de pontilhas e de colares de ouro presos ao pescoço ou à
cintura; as mulheres, um pouco mais exigentes do que os homens na maneira de
vestir, ostentavam os tradicionais balandraus, sobre cujos peitos brilhavam
sumptuosos broches e outros adereços ditados pelos figurinos inglês e italiano
daquela época. Do mesmo modo também, e porque as circunstâncias assim o
impunham, todas exibiam uma coifa especial, fosse um toucado revestido por fora
a fios de ouro ou de prata, fosse outra cobertura de igual aplicação mas de
maior imponência, como os chapéus altos segundo a voga inspirada nas chamadas coiffures à cornes, que as damas
francesas usavam nos grandes acontecimentos.
A uma distância considerável do
terreiro, onde os convidados iam batendo os pés para acudir à dor do frio e
espantar os cães famintos, tinham-se concentrado dezenas de populares a
observar o movimento da chegada de nobres, clérigos, lentes e burgueses, quase
todos em luxuosas liteiras, ou montados no dorso de cavalos de excelente porte,
ou, até mesmo, conduzidos em carroças puxadas por juntas de bois. Entre os
convidados destacava-se um jovem fidalgo, Afonso Peres Sousa, que Fernando I,
rei de Portugal, enviara como seu representante à cerimónia. Afonso Peres Sousa
fora o único, aliás, a ser recebido formalmente por João Afonso Telo antes da
celebração do consórcio, o único com direito a esperar no interior da casa e o
primeiro a felicitar a nubente, em nome, claro está, d'el-rei de Portugal.
A presença do emissário de Fernando
I, que um ano antes subira ao trono por morte de seu pai, Pedro I, colheu de
surpresa os convidados, que interpretaram a atitude do rei como um indiscutível
gesto de admiração pelo conde de Barcelos. E o próprio conde, ao convidar sua alteza
real, jamais imaginaria que ele viesse a considerá-lo tanto, mesmo que tal
consideração fosse manifestada por interposta pessoa. Por isso, e à parte as
razões pelas quais o monarca Fernando I decidiu enviar um consignatário ao casamento
da sobrinha de João Afonso Telo Menezes, distinto nobre que fora armado
cavaleiro por Pedro I, a verdade é que Afonso Peres Sousa acabaria por suscitar
mais curiosidade do que o nubente João Lourenço Cunha. Os convidados, que aos
poucos se foram juntando em pequenos grupos, acabaram assim por falar mais do
rei do que do casamento ou dos noivos, centrando as conversas na situação da
corte e do país, no processo de desenvolvimento de Portugal nos domínios do comércio
e da indústria, na colossal fortuna herdada pelo jovem monarca, na importância
extraordinária das primeiras medidas de protecção à marinha e à agricultura
determinadas pela coroa de Lisboa, ou na perigosa intenção de Fernando I intervir
nos dissídios do país vizinho, em relação aos quais seu pai se manteve sempre
afastado, não obstante as ferozes lutas fratricidas que duravam desde a morte
de Afonso XI, ocorrida em 1350.
Acerca desta última questão,
porventura a mais complexa de todas, as opiniões não foram unânimes: uns, os
mais estúpidos e gananciosos, entendiam que o rei Fernando I devia imiscuir-se
rapidamente nos negócios políticos de Castela para alargar o domínio
territorial português a norte do Minho, evitando que Henrique, o filho bastardo
que o falecido Afonso XI teve de Maria de Portugal, viesse um dia, pela força
ou à traição, usurpar o legítimo trono a seu irmão Pedro. Outros, porém, menos usurários
e canalhas, defendiam que Fernando Ijamais deveria meter-se nos assuntos que
lhe não dissessem respeito, sequer respeito à coroa de Portugal, sob pena de
vir a pagar cara a ousadia. De qualquer modo, por respeito ou por medo, todos
reconheciam que sua alteza real era soberano nas decisões, pelo que, fosse qual
fosse o modo como as assumisse e aplicasse, elas seriam sempre acolhidas pelos
súbditos com a vénia devida. Também a Universidade de Coimbra foi discutida
nesse dia, e no terreiro, sobretudo pelos lentes, que não se cansaram de gabar
o acto de nomeação de Estêvão Domingos Vouzela para conservador da respectiva
escola, cargo que havia sido ocupado durante bastante tempo por João Esteves, considerado
por muitos como um dos homens mais desqualificados da Universidade». In
José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
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