segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «E o próprio conde, ao convidar sua alteza real, jamais imaginaria que ele viesse a considerá-lo tanto, mesmo que tal consideração fosse manifestada por interposta pessoa»

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«(…) Em frente à porta principal do solar de João Afonso Telo, no terreiro enlameado pelo derretimento da geada batida pelo sol daquela manhã de fim de Outubro, começaram a aglomerar-se, ainda cedo, dezenas de convidados para o casamento de Leonor Teles Menezes com João Lourenço Cunha. Os homens, quase todos enrolados em ricos mantões talhados à moda da antiga corte de São Luís, rei de França, apresentavam-se de capuzes na cabeça, de sapatos de pontilhas e de colares de ouro presos ao pescoço ou à cintura; as mulheres, um pouco mais exigentes do que os homens na maneira de vestir, ostentavam os tradicionais balandraus, sobre cujos peitos brilhavam sumptuosos broches e outros adereços ditados pelos figurinos inglês e italiano daquela época. Do mesmo modo também, e porque as circunstâncias assim o impunham, todas exibiam uma coifa especial, fosse um toucado revestido por fora a fios de ouro ou de prata, fosse outra cobertura de igual aplicação mas de maior imponência, como os chapéus altos segundo a voga inspirada nas chamadas coiffures à cornes, que as damas francesas usavam nos grandes acontecimentos.
A uma distância considerável do terreiro, onde os convidados iam batendo os pés para acudir à dor do frio e espantar os cães famintos, tinham-se concentrado dezenas de populares a observar o movimento da chegada de nobres, clérigos, lentes e burgueses, quase todos em luxuosas liteiras, ou montados no dorso de cavalos de excelente porte, ou, até mesmo, conduzidos em carroças puxadas por juntas de bois. Entre os convidados destacava-se um jovem fidalgo, Afonso Peres Sousa, que Fernando I, rei de Portugal, enviara como seu representante à cerimónia. Afonso Peres Sousa fora o único, aliás, a ser recebido formalmente por João Afonso Telo antes da celebração do consórcio, o único com direito a esperar no interior da casa e o primeiro a felicitar a nubente, em nome, claro está, d'el-rei de Portugal.
A presença do emissário de Fernando I, que um ano antes subira ao trono por morte de seu pai, Pedro I, colheu de surpresa os convidados, que interpretaram a atitude do rei como um indiscutível gesto de admiração pelo conde de Barcelos. E o próprio conde, ao convidar sua alteza real, jamais imaginaria que ele viesse a considerá-lo tanto, mesmo que tal consideração fosse manifestada por interposta pessoa. Por isso, e à parte as razões pelas quais o monarca Fernando I decidiu enviar um consignatário ao casamento da sobrinha de João Afonso Telo Menezes, distinto nobre que fora armado cavaleiro por Pedro I, a verdade é que Afonso Peres Sousa acabaria por suscitar mais curiosidade do que o nubente João Lourenço Cunha. Os convidados, que aos poucos se foram juntando em pequenos grupos, acabaram assim por falar mais do rei do que do casamento ou dos noivos, centrando as conversas na situação da corte e do país, no processo de desenvolvimento de Portugal nos domínios do comércio e da indústria, na colossal fortuna herdada pelo jovem monarca, na importância extraordinária das primeiras medidas de protecção à marinha e à agricultura determinadas pela coroa de Lisboa, ou na perigosa intenção de Fernando I intervir nos dissídios do país vizinho, em relação aos quais seu pai se manteve sempre afastado, não obstante as ferozes lutas fratricidas que duravam desde a morte de Afonso XI, ocorrida em 1350.
Acerca desta última questão, porventura a mais complexa de todas, as opiniões não foram unânimes: uns, os mais estúpidos e gananciosos, entendiam que o rei Fernando I devia imiscuir-se rapidamente nos negócios políticos de Castela para alargar o domínio territorial português a norte do Minho, evitando que Henrique, o filho bastardo que o falecido Afonso XI teve de Maria de Portugal, viesse um dia, pela força ou à traição, usurpar o legítimo trono a seu irmão Pedro. Outros, porém, menos usurários e canalhas, defendiam que Fernando Ijamais deveria meter-se nos assuntos que lhe não dissessem respeito, sequer respeito à coroa de Portugal, sob pena de vir a pagar cara a ousadia. De qualquer modo, por respeito ou por medo, todos reconheciam que sua alteza real era soberano nas decisões, pelo que, fosse qual fosse o modo como as assumisse e aplicasse, elas seriam sempre acolhidas pelos súbditos com a vénia devida. Também a Universidade de Coimbra foi discutida nesse dia, e no terreiro, sobretudo pelos lentes, que não se cansaram de gabar o acto de nomeação de Estêvão Domingos Vouzela para conservador da respectiva escola, cargo que havia sido ocupado durante bastante tempo por João Esteves, considerado por muitos como um dos homens mais desqualificados da Universidade». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

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