segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Os Íntimos. Inês Pedrosa. «Augusto chama-me sacana presunçoso, rouba-me um charuto, lembra-me que ainda faltam vinte e cinco minutos, tempo para a desforra»

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«(…) Hoje já posso evocar estes factos sem naufragar neles. Como se tivessem acontecido a outra pessoa, noutra vida. Tudo se tornou muito mais simples, desde então. O hábito dos jantares mensais na tasca vem dessa época. Mês a mês, no dia da morte de Leonor. Ainda hoje os jantares são sempre no dia da morte de Leonor. Nenhum de nós menciona a data, ou o nome dela. Nem sei de quem foi a ideia – lembro-me que da primeira vez o Augusto me telefonou dizendo que estava combinado um jantar com a malta para daí a três dias no sítio tal, onde se comia uma dobrada quase melhor do que as do Porto, e informou-me que passaria pela minha casa às oito para me ir buscar. Calas o bico e vens. Nem penses em pôr-te com mer… A última coisa em que eu poderia pensar, naquela época, era em pôr-me com mer… Calei o bico e fui. Por sorte, é um dos poucos restaurantes de Lisboa onde continuamos a poder fumar. Numa esquina discreta, perto do Largo do Carmo. Paro no largo deserto, iluminado. Estou dentro de um cenário de cinema. Como se as casas fossem de cartão prensado, e a vida se suspendesse para poder ser inventada, debaixo das luzes que vacilam na noite por causa da chuva, uma chuva miudinha, falsa, melodiosa, regulada como banda sonora. A tasca tem mesas corridas, louça desemparelhada, cinzeiros matarruanos de vidro grosso e toalhas de papel. Nada de design, como gostam as mulheres e os gajos que não gostam de mulheres. Deixei de almoçar com o meu velho amigo Jacinto por causa das toalhas de mesa. Mal chegou à direcção do jornal, Jacinto começou a recusar-se a almoçar em restaurantes com toalhas de papel. Dizia que não podia ser visto em pardieiros. Que não lhe ficava bem. E que não havia privacidade. Um director sem privacidade não é ninguém. Eu, pelo contrário, só me sinto bem em tascas. Gosto particularmente dessas toalhas onde se pode tomar notas ou fazer desenhos. Os restaurantes elegantes deprimem-me: são lugares onde uma trivial sopa de cenoura adquire um nome sonante que lhe rouba o sabor. Em geral as doses são curtas e os silêncios demasiado indiscretos. Gosto do espaço acanhado da casa de pasto A Claque. Gosto desta sala atulhada de quinquilharia e de vozes. As vozes das pessoas, oitenta por cento de homens, o que também me é agradável, a voz do relato na televisão. Um plasma gigante, para que nenhum passe ou drible nos escape. O calor humano embacia os vidros. Lá fora chove cada vez com mais força. Nos últimos meses, parece que Deus decidiu lixar o cartaz turístico do país: a canalização celeste estoirou precisamente em cima de Portugal, o país da cortiça. O pessoal flutua, não há problema. Gosto desta sensação de viver num aquário onde toda a gente bóia. Vivos e mortos, tudo a boiar, uma enchente de corpos flutuantes. No estádio também chove, o que neste momento é uma vantagem, os bravos Dragões do Norte não se deixam intimidar com a força da água, ao contrário das águias de sequeiro. Dois a zero, e os minutos a avançar. Mais uma vitória à vista. O único defeito dos dragões é esse: ganham demasiado depressa. A meio do jogo já não há adrenalina. Neste lugar, durante estas horas, não preciso de ser inteligente. Nem sedutor. Nem mandão. Nada do que se espera de mim, lá fora. Tantas expectativas, lá fora. Vou fazer cinquenta e cinco anos, é tempo de me libertar destas mer… Quem é que eu estou a enganar? Sei que nunca me libertarei destas mer…
Augusto chama-me sacana presunçoso, rouba-me um charuto, lembra-me que ainda faltam vinte e cinco minutos, tempo para a desforra. Pobre rapaz, toma outro charuto, para não chorares. O que é que eu não sei destes gajos? O meio campo. Os minutos de empate. Os ziguezagues. Fora isso, conheço-os melhor do que a mim mesmo. Somos um grupo. Uma coisa sem ego. Uma comunidade. Gostamos de estar juntos, de sofrer juntos por causa do futebol, de nos insultarmos uns aos outros por causa do futebol. Então esse cabrito assado, sai ou não sai, princesa? Portem-se bem, meninos. Já vos dou mais uma dosezinha de pataniscas e torresmos. O cabrito está quase no ponto. Não é como tu, querida, que já nasceste no ponto. Ainda agora chegaram e já estão tão engraçadinhos… Ao fim da noite não há-de haver quem vos ature. Enganas-te, Celinha, há resmas de mulheres desejosas de nos aturar. Mas nós só gostamos de ti. E uma sopinha, entretanto, ninguém quer? Vade retro. Eu até acho que me casei só para deixar de ter de comer sopa. Passa-me o queijo, cab… Não é todo para ti. Como a Célia, também não é toda para ti. A Célia é a filha do dono da tasca, uma miúda lindíssima, mãe de duas crianças, que está sempre a fazer pouco de nós». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-047-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT