«(…) Hoje já posso evocar estes factos sem naufragar neles. Como se
tivessem acontecido a outra pessoa, noutra vida. Tudo se tornou muito mais
simples, desde então. O hábito dos jantares mensais na tasca vem dessa época.
Mês a mês, no dia da morte de Leonor. Ainda hoje os jantares são sempre no dia
da morte de Leonor. Nenhum de nós menciona a data, ou o nome dela. Nem sei de
quem foi a ideia – lembro-me que da primeira vez o Augusto me telefonou dizendo
que estava combinado um jantar com a malta para daí a três dias no sítio tal,
onde se comia uma dobrada quase melhor do que as do Porto, e informou-me que
passaria pela minha casa às oito para me ir buscar. Calas o bico e vens. Nem penses em pôr-te
com mer… A última coisa em que eu poderia pensar, naquela época, era em pôr-me
com mer… Calei o bico e fui. Por sorte, é um dos poucos restaurantes de Lisboa
onde continuamos a poder fumar. Numa esquina discreta, perto do Largo do Carmo.
Paro no largo deserto, iluminado. Estou dentro de um cenário de cinema. Como se
as casas fossem de cartão prensado, e a vida se suspendesse para poder ser inventada,
debaixo das luzes que vacilam na noite por causa da chuva, uma chuva miudinha,
falsa, melodiosa, regulada como banda sonora. A tasca tem mesas corridas, louça
desemparelhada, cinzeiros matarruanos de vidro grosso e toalhas de papel. Nada
de design, como gostam as mulheres e os gajos que não gostam de
mulheres. Deixei de almoçar com o meu velho amigo Jacinto por causa das toalhas
de mesa. Mal chegou à direcção do jornal, Jacinto começou a recusar-se a
almoçar em restaurantes com toalhas de papel. Dizia que não podia ser visto em
pardieiros. Que não lhe ficava bem. E que não havia privacidade. Um director
sem privacidade não é ninguém. Eu, pelo contrário, só me sinto bem em tascas.
Gosto particularmente dessas toalhas onde se pode tomar notas ou fazer
desenhos. Os restaurantes elegantes deprimem-me: são lugares onde uma trivial
sopa de cenoura adquire um nome sonante que lhe rouba o sabor. Em geral as
doses são curtas e os silêncios demasiado indiscretos. Gosto do espaço acanhado
da casa de pasto A Claque. Gosto desta sala atulhada de quinquilharia e de vozes. As vozes das
pessoas, oitenta por cento de homens, o que também me é agradável, a voz do
relato na televisão. Um plasma gigante, para que nenhum passe ou drible nos escape. O calor humano embacia os vidros. Lá fora chove
cada vez com mais força. Nos últimos meses, parece que Deus decidiu lixar o
cartaz turístico do país: a canalização celeste estoirou precisamente em cima
de Portugal, o país da cortiça. O pessoal flutua, não há problema. Gosto desta
sensação de viver num aquário onde toda a gente bóia. Vivos e mortos, tudo a
boiar, uma enchente de corpos flutuantes. No estádio também chove, o que neste
momento é uma vantagem, os bravos Dragões do Norte não se deixam intimidar com
a força da água, ao contrário das águias de sequeiro. Dois a zero, e os minutos
a avançar. Mais uma vitória à vista. O único defeito dos dragões é esse: ganham
demasiado depressa. A meio do jogo já não há adrenalina. Neste lugar, durante
estas horas, não preciso de ser inteligente. Nem sedutor. Nem mandão. Nada do
que se espera de mim, lá fora. Tantas expectativas, lá fora. Vou fazer cinquenta
e cinco anos, é tempo de me libertar destas mer… Quem é que eu estou a enganar?
Sei que nunca me libertarei destas mer…
Augusto chama-me sacana presunçoso,
rouba-me um charuto, lembra-me que ainda faltam vinte e cinco minutos, tempo
para a desforra. Pobre rapaz, toma outro charuto, para não chorares. O que é
que eu não sei destes gajos? O meio
campo. Os minutos de empate. Os ziguezagues. Fora isso, conheço-os melhor do
que a mim mesmo. Somos um grupo. Uma coisa sem ego. Uma comunidade. Gostamos de
estar juntos, de sofrer juntos por causa do futebol, de nos insultarmos uns aos
outros por causa do futebol. Então esse cabrito assado, sai ou não sai,
princesa? Portem-se bem, meninos. Já vos dou mais uma dosezinha de pataniscas e
torresmos. O cabrito está quase no ponto. Não é como tu, querida, que já
nasceste no ponto. Ainda agora chegaram e já estão tão engraçadinhos… Ao fim da
noite não há-de haver quem vos ature. Enganas-te, Celinha, há resmas de
mulheres desejosas de nos aturar. Mas nós só gostamos de ti. E uma sopinha,
entretanto, ninguém quer? Vade retro. Eu até acho que me casei só para deixar
de ter de comer sopa. Passa-me o queijo, cab… Não é todo para ti. Como a Célia,
também não é toda para ti. A Célia é a filha do dono da tasca, uma miúda
lindíssima, mãe de duas crianças, que está sempre a fazer pouco de nós». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote,
2010, ISBN 978-972-204-047-1.
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PdomQuixote/JDACT