sábado, 6 de janeiro de 2018

As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal. Maria Graciete Besse. «Neste mundo de tarefas bem delimitadas, inscreve-se contudo uma retórica da emancipação, presente ao longo de todo o livro, e capaz de conduzir a um equacionamento negativo do amor»

Cortesia de wikipedia

«(…) Ou ainda, o nojo numa relação conjugal sem afecto, como afirma Joana: sabes tu o que é sermos tomadas nuas por mãos apressadas e bocas moles de cuspo? O corpo dilacerado por membro estranho, escaldante, a magoar sobretudo a alma? Espada leivosa a retalhar-nos as carnes, Mariana, sabes tu minha irmã, o que é calarmos, dia após dia, o nojo, a aflição já sem lágrimas, nem lágrimas tendo para nos chorarmos, nem pena conseguirmos arranjar mesmo por nós próprias? No entanto, o que descobrimos em Novas Cartas Portuguesas não é apenas a história das mulheres, mas antes uma rede complexa de determinações culturais em que homens e mulheres se confundem no interior de um mesmo circuito ideológico pontuado pela multiplicação de representações, imagens, reflexos, mitos, identificações, mesmo se este processo passa pela definição do mundo masculino português, assim cruelmente apresentado: frágeis no entanto são os homens em suas nostalgias, medos, rogos, prepotências, fingidas docilidades. Frágeis são os homens deste país de nostalgias idênticas e medos e desânimos. Fragilidade em tentativas várias de disfarce: o desafiar touros em praças públicas, por exemplo, os carros de corridas e lutas corpo-a-corpo. Ó meu Portugal de machos a enganar impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados na cama, só atentos a mostrar pi… Por outro lado, Novas Cartas Portuguesas utiliza todos os recursos da polifonia ao serviço do confronto de dois mundos, evocando os problemas gerais da relação homem-mulher, introduzindo um debate sobre questões tabu como o adultério e o aborto, ou propondo ironicamente uma definição das tarefas femininas, apresentadas sob a forma de um exercício escolar, como a redacção de uma rapariga de nome Maria Adélia nascida no Carvalhal e educada num asilo religioso em Beja, de que extraímos a seguinte passagem: as tarefas do homem são aquelas da coragem, da força e do mando. Quer dizer: serem presidentes, generais, serem padres, soldados, caçadores, serem toureiros, serem futebolistas e juízes, etc., etc. (...) Depois há as tarefas das mulheres, que acima de todas está a de ter filhos, guardá-los e tratá-los nas doenças, dar-lhes a educação em casa e o carinho; é também tarefa da mulher ser professora e mais coisas, tal como costureira, cabeleireira, criada, enfermeira. Há também mulheres médicas, engenheiras, advogadas, etc., mas o meu pai diz que é melhor a gente não se fiar nelas que as mulheres foram feitas para a vida da casa que é uma tarefa muito bonita e dá muito gosto ter tudo limpo e arrumado para quando chegar o nosso marido ele poder descansar do trabalho do dia que foi tanto, a fim de arranjar dinheiro para nos sustentar e aos filhos. Neste mundo de tarefas bem delimitadas, inscreve-se contudo uma retórica da emancipação, presente ao longo de todo o livro, e capaz de conduzir a um equacionamento negativo do amor, entendido como cristalização cultural, visto que: ...todos os mitos do amor dão-no como impedido e irrealizado, e todas as histórias de amor são histórias de suicidas; porque temos de remontar o curso da dominação, desmontar as suas circunstâncias históricas, para destruir suas raízes. Entendo, pois, que não basta pensar em relações de produção, sendo socialmente a mulher produtora de filhos e vendendo a sua força de trabalho ao homem-patrão. Esta é uma exacta e muito necessária mas não total leitura da realidade (...). Mas a esta leitura é necessário acrescentar todos os sistemas de cristalizações culturais que vieram sustentando, reforçando, justificando e ampliando essa dominação da mulher. O discurso de Novas Cartas Portuguesas corresponde assim a um exercício entendido como instrumento político, como revisitação da ordem simbólica que governa a sociedade, através da noção de resistência feminina que aponta para duas atitudes fundamentais (já identificáveis de certa forma, no início do século XIX, em Portugal, com as mulheres republicanas, mas que o salazarismo esmagará em seguida ): uma forte mobilização no sentido de conquistar direitos cívicos e liberdade de expressão; e uma escolha identitária que tenta promover uma relação feminina com o mundo, através do exercício de uma escrita ligada à condição das mulheres. A dessacralização do sistema patriarcal passa em primeiro lugar por uma tomada de consciência do estatuto da mulher e, em seguida, pela desmontagem dos mecanismos de dominação que persiste ainda nas mentalidades dos nossos dias, apesar de todas as transformações que conheceu a sociedade portuguesa: a mulher vota, é universitária, emprega-se; a mulher bebe, a mulher fuma, a mulher concorre a concursos de beleza, a mulher usa mini-maxi-saia, hot-pants, tampax, diz estou menstruada à frente de homens, a mulher toma a pílula (...) vai para a cama com o namorado (...)».In Maria Graciete Besse, As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes nº 26, 2006.

Cortesia de rLatitudes/JDACT