«(…) Ou ainda, o nojo numa
relação conjugal sem afecto, como afirma Joana: sabes tu o que é sermos tomadas
nuas por mãos apressadas e bocas moles de cuspo? O corpo dilacerado por membro
estranho, escaldante, a magoar sobretudo a alma? Espada leivosa a retalhar-nos as
carnes, Mariana, sabes tu minha irmã, o que é calarmos, dia após dia, o nojo, a
aflição já sem lágrimas, nem lágrimas tendo para nos chorarmos, nem pena
conseguirmos arranjar mesmo por nós próprias? No entanto, o que descobrimos em Novas Cartas Portuguesas não
é apenas a história das mulheres, mas antes uma rede complexa de determinações culturais
em que homens e mulheres se confundem no interior de um mesmo circuito
ideológico pontuado pela multiplicação de representações, imagens, reflexos, mitos,
identificações, mesmo se este processo passa pela definição do mundo masculino
português, assim cruelmente apresentado: frágeis no entanto são os homens em
suas nostalgias, medos, rogos, prepotências, fingidas docilidades. Frágeis são
os homens deste país de nostalgias idênticas e medos e desânimos. Fragilidade
em tentativas várias de disfarce: o desafiar touros em praças públicas, por
exemplo, os carros de corridas e lutas corpo-a-corpo. Ó meu Portugal de machos
a enganar impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados
na cama, só atentos a mostrar pi… Por outro lado, Novas Cartas Portuguesas utiliza todos os recursos da
polifonia ao serviço do confronto de dois mundos, evocando os problemas gerais
da relação homem-mulher, introduzindo um debate sobre questões tabu como o
adultério e o aborto, ou propondo ironicamente uma definição das tarefas
femininas, apresentadas sob a forma de um exercício escolar, como a redacção de
uma rapariga de nome Maria Adélia nascida no Carvalhal e educada num asilo
religioso em Beja, de que extraímos a seguinte passagem: as tarefas do homem
são aquelas da coragem, da força e do mando. Quer dizer: serem presidentes, generais,
serem padres, soldados, caçadores, serem toureiros, serem futebolistas e juízes,
etc., etc. (...) Depois há as tarefas das mulheres, que acima de todas está a
de ter filhos, guardá-los e tratá-los nas doenças, dar-lhes a educação em casa e
o carinho; é também tarefa da mulher ser professora e mais coisas, tal como
costureira, cabeleireira, criada, enfermeira. Há também mulheres médicas, engenheiras,
advogadas, etc., mas o meu pai diz que é melhor a gente não se fiar nelas que
as mulheres foram feitas para a vida da casa que é uma tarefa muito bonita e dá
muito gosto ter tudo limpo e arrumado para quando chegar o nosso marido ele
poder descansar do trabalho do dia que foi tanto, a fim de arranjar dinheiro
para nos sustentar e aos filhos. Neste mundo de tarefas bem delimitadas,
inscreve-se contudo uma retórica da emancipação, presente ao longo de todo o
livro, e capaz de conduzir a um equacionamento negativo do amor, entendido como
cristalização cultural, visto que: ...todos os mitos do amor dão-no como
impedido e irrealizado, e todas as histórias de amor são histórias de suicidas;
porque temos de remontar o curso da dominação, desmontar as suas circunstâncias
históricas, para destruir suas raízes. Entendo, pois, que não basta pensar em relações
de produção, sendo socialmente a mulher produtora de filhos e vendendo a sua
força de trabalho ao homem-patrão. Esta é uma exacta e muito necessária mas não
total leitura da realidade (...). Mas a esta leitura é necessário acrescentar
todos os sistemas de cristalizações culturais que vieram sustentando,
reforçando, justificando e ampliando essa dominação da mulher. O discurso de Novas Cartas Portuguesas corresponde
assim a um exercício entendido como instrumento político, como revisitação da
ordem simbólica que governa a sociedade, através da noção de resistência
feminina que aponta para duas atitudes fundamentais (já identificáveis de certa
forma, no início do século XIX, em Portugal, com as mulheres republicanas, mas
que o salazarismo esmagará em seguida ): uma forte mobilização no sentido de
conquistar direitos cívicos e liberdade de expressão; e uma escolha identitária
que tenta promover uma relação feminina com o mundo, através do exercício de
uma escrita ligada à condição das mulheres. A dessacralização do sistema
patriarcal passa em primeiro lugar por uma tomada de consciência do estatuto da
mulher e, em seguida, pela desmontagem dos mecanismos de dominação que persiste
ainda nas mentalidades dos nossos dias, apesar de todas as transformações que
conheceu a sociedade portuguesa: a mulher vota, é universitária, emprega-se; a
mulher bebe, a mulher fuma, a mulher concorre a concursos de beleza, a mulher usa
mini-maxi-saia, hot-pants, tampax, diz estou menstruada à frente de homens, a
mulher toma a pílula (...) vai para a cama com o namorado (...)».In
Maria Graciete Besse, As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder
Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes nº 26, 2006.
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