quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Vi Francisco Morais abanar a cabeça e passar as mãos pelas têmporas, alongando-se num interminável lamento»

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Violante Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Lérias, lérias, o príncipe João Manuel está vivo e de saúde! Crescei e multiplicai-vos, ordens do Criador e preceito que todo o honrem, príncipe ou plebeu, cumpre de bom grado. Que esse seja o último dos nossos cuidados. Atendamos ao principal, o Norte de África, e não nos deixemos confundir por misteres de alcova. Há que largar as praças, senhor conde de Linhares, nada mais há a fazer. Abandonar o Norte de África? Onde andas com a cabeça, Francisco Morais? Avançam os mouros por aí acima em menos de nada! As nossas praças em África são um freio à investida do grão-turco, não as podemos largar, nem hoje nem nunca. Mas, senhor conde de que outra forma conseguiremos ajustar as contas do Reino? O senhor meu marido levou o copo à boca e demorou-se a saborear mais um golo do vinho alentejano. Depois, pousou o copo e prosseguiu: ora, Francisco, João III procede por vezes como um vulgar mercador, e o Reino não é uma chafarica da Rua Nova! Com franqueza! Temos o ouro do Brasil, ouro sem fim! Temos escravos até fartar, especiarias, porcelanas, tapeçarias, tecidos e riquezas, que mais nos falta? E a fortuna que Carlos V nos fez pagar pelas ilhas Molucas, senhor conde? Chega para isso e para muito mais! Somos donos do mundo, c'os diabos! Pensa alto, pensa grande. De gente mesquinha está o Reino cheio. Temos educação, temos quatro tipografias! Temos mestres estrangeiros em Coimbra, temos cientistas e matemáticos, temos navegadores que até a volta ao mundo deram. Não tens ouvido o que Pedro Nunes diz? Que o astrolábio, a bússola e o quadrante nos hão-de levar a novos céus, a novos mares. Muito mundo há ainda por navegar!
E quem nos governará? Se todos os infantes nos morrem… Quem irá segurar o trono? Que pergunta tola, Francisco Morais, já te disse. há-de ser um filho do infante João Manuel!
Vi Francisco Morais abanar a cabeça e passar as mãos pelas têmporas, alongando-se num interminável lamento. Em nada lhe aprazia contrariar o seu senhor mas, em verdade, a desarmonia entre o derrotismo de um e o ânimo exaltado do outro acompanhava os seus muitos e longos colóquios. Raramente acertavam passo. Credo! A desdita não há-de ser tanta..., e agora, meu caro amigo, há que acreditar na Insulíndia e nos novos tesouros que de lá nos chegarão! Tesouros, são as Molucas algum tesouro, senhor conde? Perdoai-me a insistência, mas não estou em crer que... Insulíndia, Japão... Apanho palavras no ar para logo as deixar cair. O senhor meu marido era um sonhador e eu mal sabia pronunciar aqueles nomes com sabor a cravo e a seda. O eterno desaguisado sobre as Molucas causava-me um tédio sem nome… E logo quando eu me achava particularmente radiosa, qual mui alta senhora de fogoso, ainda que por ora esquivo, trovador cativo. Os brincos de duas laçadas de pérolas sobressaíam-me do pescoço esguio, pois que trazia o cabelo apanhado numa coifa de veludo, toda ela ornamentada com um cordão de pérolas. A veste que trajava, verde-hortelã, era bonita e clássica, bem ajustada nas costas, fazendo realçar a cintura. Apesar da minha fresca prenhez, mantinha-me firme e jamais me sentira tão cheia de mim.
Radiosa, sim, mas também algo amofinada. Não com os trabalhos de João III, ou com os rumores que chegavam de Trento de que o papa convocara um Concílio, inquieto com as ideias de Erasmo de Roterdão, tentando a custo congregar e reunir todos os cristãos; não com o triste abandono de Safim e Azamor no Norte de África; não porque se achasse a praça de Diu cercada pelos otomanos; enfadava-me mormente a conversa em torno da ilhas de Maluco e do incerto hemisfério que ora as atribuía aos portugueses ora aos espanhóis. Agastava-me sobremaneira ouvir o senhor meu marido e Francisco Morais discutirem sobre a desavença entre João III e Carlos V acerca das ilhas de Maluco, das especiarias de Maluco, do cravo valioso de Maluco, da fortuna de 350 mil ducados que João III gastara para se casar com dona Catarina e comprar as ilhas a Carlos V. Malvadas ilhas de Maluco que malucos a todos, e mormente a mim, nos deixavam». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                   
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