quinta-feira, 23 de julho de 2020

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Ainda abalada pelas novidades, Carol, quando entrou na copa, encontrou uma mulher sentada a uma mesa onde repousava uma também solitária garrafa de whisky»

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Paris, 3 de Junho de 1940
«(…) A maioria das freiras e das noviças vai para o convento de Clermont-Ferrand, informou a Madre. Não fica ninguém em Paris?, angustiou-se Carol. O Saint-Sulpice será encerrado. Tens de regressar a Portugal. Não quero!, protestou a minha prima. Madre Mary pegou-lhe na mão com a ternura do costume. Conhecia os factos: a morte da mãe, a zanga com o pai, o curso que ia a meio, as amizades parisienses. Porém, repetiu, não poderia permanecer em Paris. Querida Carrô, em Clermont-Ferrand o convento não é grande. Mas arranjo-te um quarto na cidade. Embora com enorme relutância, Carol lá prometeu partir. Já de saída, lembrou-se da Hirondelle. Como irão para lá?
Nas Caraíbas, Madre Mary tirara a carta de condução e em Paris guiava uma pequena camioneta, propriedade do Saint-Sulpice, que levaria as últimas freiras, enquanto as outras partiriam de comboio, algumas já no dia seguinte. E a minha bicicleta?, perguntou Carol. Não admitia deixar a Hirondelle. Embora comprada em segunda mão, era um modelo de topo e fora cara. Com um selim Terry, aros e para-lamas de alumínio, um travão dianteiro u-Brake e um travão traseiro Cantlever, a super Hirondelle exibia uma característica única que a celebrizava: o sistema Retro-Directe. A originalidade permitia que se pedalasse para a frente quando o terreno era plano, invertendo-se a situação nas subidas, onde se pedalava para trás, o que desmultiplicava a força nos pedais. A tudo isso, havia a juntar uma pintura negra sem um risco e dois resistentes pneus Michelin 650, que venciam qualquer piso! O orgulho da minha prima. Conhecedora daquela forte estima, madre Mary sugeriu-lhe que levasse a Hirondelle no comboio, podia ir à estação saber quanto custaria o transporte. De caminho, informava-se sobre o preço do bilhete para Portugal. Mais vale teres essa possibilidade preparada, isto pode ser pior do que imaginamos, rematou ela, fazendo com que a dor de barriga de Carol se agravasse.

Paris, 3 de Junho de 1940
Ainda abalada pelas novidades, Carol, quando entrou na copa, encontrou uma mulher sentada a uma mesa onde repousava uma também solitária garrafa de whisky. Polly, uma americana de braços polpudos, conduzia uma ambulância ao serviço da Cruz Vermelha. Meses antes, embarcara uma carrinha Ford num barco, em Boston, e rumara à Europa, para ser útil na guerra. Numa oficina de Antuérpia, mandara pintar o veículo de branco, com uma cruz vermelha em cada porta lateral. Depois, partira em missão, transportando feridos entre os hospitais e uma frente de batalha sempre em recuo. Estivera algumas semanas na Holanda e na Bélgica, mas acabara no Norte de França, empurrada pelo rápido avanço dos alemães. Dez dias antes, rumara a Paris com cinco soldados ingleses na ambulância. Dois tinham morrido durante a viagem e entregara os outros num hospital parisiense, perto do Parque Monceau, mas desde essa altura vivia entediada por não poder regressar a Dunquerque, cidade agora totalmente cercada pelos alemães. Sem alento ou distracção, de dia cirandava sem destino pelos boulevards de Paris e à noite visitava os night-clubs mais na moda, o L´Etoile de Kléber ou o Le Gerny´s, em busca de companhia masculina.
Vai um copo?, perguntou. O desafio era subversivo, a garrafa fora trazida às escondidas, madre Mary não levantara a proibição do álcool na residencial. À saúde deles, concluiu a americana. Certamente devido à sua nacionalidade, os Estados Unidos tinham ainda uma postura neutral em 1940, nunca usava a palavra nazis para descrever os alemães, como se não os quisesse ofender. Achas que vão invadir Paris? Sim, Cárol, respondeu Polly, num tom condescendente. Tanto os ingleses como os americanos chamavam Cárol, com acento no a, à minha prima. Quanto aos franceses, uns acentuavam o o tratando-a por Caról, outros usavam o Caroline, mas só madre Mary aplicava o simpático Carrô». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT