Lanhoso. Dezembro de 1130
«(…) Os
cães do mal tombariam à frente dele, as flechas de fogo apagar-se-iam aos seus
pés, as mulheres cavaleiras encontrariam nele a agonia e os corvos iriam dançar
sobre cadáveres malditos, anunciando um novo reino! Elvira parecia em transe, os
seus olhos estavam vidrados, o seu rosto tenso, e terminou a declaração com um
murmúrio:
Os meus deuses do
Norte tudo sabem!
O príncipe,
fascinado com aquelas palavras místicas, só no final da fantástica descrição é
que perguntou: normanda Elvira, serei rei de Portugal? A rapariga riu-se,
desfazendo a rigidez que lhe assolara a cara. Aproximou-se dele e em movimentos
rápidos deixou cair a camisa, a saia e as roupas interiores, revelando a sua
nudez. Afonso Henriques admirou aquele corpo monumental, mas não avançou de
pronto, o que a levou a afirmar: sois o meu rei... Dando um passo em frente,
Elvira pegou na mão direita dele e colocou-a sobre o seu seio volumoso,
enquanto exigia: tomai-me e comei-me.
Apesar do perfume
de heresia, o convite dela teve o condão de espevitar o príncipe, que,
inebriado de desejo, a possuiu ali mesmo. Depois, levou-a para o quarto e
tomou-a várias vezes naquela noite. Quando a madrugada começou a nascer, Elvira
avisou que, se continuassem naquilo, iria gerar filhos, tendo o príncipe
retorquido sem pestanejar: cá estarei para ser pai deles.
Coimbra, Páscoa de 1131
Naquele novo ano,
apesar de já saciado por Elvira, Afonso Henriques estava ainda desgostoso com
Chamoa e por isso decidiu rumar ao sul e passar a Páscoa em Coimbra, levando a
sua pequena corte com ele. O príncipe admirava cada vez mais aquela povoação, a
sua dimensão, o seu comércio, a sua agitação urbana e a forma como os
habitantes, independentes e orgulhosos da sua autonomia, governavam a cidade em
conjunto. Havia em Coimbra um intenso respeito pelos muitos moçárabes que ali
viviam, mas também por muçulmanos e judeus, apesar de estes serem poucos. Coimbra
era a maior cidade do Condado e também a mais populosa acima do Tejo. Nem em
Santarém, nem em Lisboa, havia tanto povo a viver. Para mais, desde que era
regente do Condado, logo após a batalha de São Mamede, o príncipe revelara os
seus dotes de habilidoso governante e a situação geral dos habitantes
melhorara, havendo desaparecido muitos dos mendigos que antes percorriam a região.
Mesmo perante a dureza do último Inverno, a fome não fustigara as gentes
daquela terra. Só uma inesperada e, a princípio, pequena querela veio perturbar
a harmonia local. O bispo de Coimbra, de seu nome Bernardo, um culto francês há
muitos anos vindo da Borgonha e que passava horas a escrever na Sé um livro
sobre a vida de São Geraldo, mostrara forte relutância em aceitar a constante
presença de Afonso Henriques na povoação, que antes supervisionava sem
concorrente.
Além disso, o bispo
nutria igualmente forte antipatia pelos muitos cónegos e religiosos que
pretendiam instalar-se na região, animados pela promessa de expansão do Condado
para sul e pela iminente luta contra os mouros abaixo do Mondego. Homens como o
prior Teotónio, que deixara Viseu, ou o arcediago Telo, estavam agora muitas
vezes em Coimbra, descrevendo as peregrinações que haviam feito a Roma ou à
Terra Santa, glorificando as vantagens da vida apostólica dos eremitas, o que
muito enervava o bispo. Certo dia, o príncipe, meu tio Ermígio Moniz, que era o
mordomo-mor do Condado, Gonçalo Sousa e eu regressávamos de um passeio a cavalo
a Montemor-o-Velho e ao entrarmos na cidade pela sua porta ocidental, a da Almedina,
cruzámo-nos com o arcediago Telo e com João Peculiar, o mestre-escola da Sé que
no passado fora eremita nos vales do Douro.
Montados cada um na sua mula, eles preparavam-se para dar uma
volta fora das muralhas. Telo contava mais de cinquenta anos e os seus cabelos totalmente
brancos, bem como a imponente presença física, geravam respeito em todos,
embora se sentisse já, na postura quebrada e nas costas cansadas, o peso da
idade e de uma saúde em perda. Quanto ao seu acompanhante, eram conhecidas a
sabedoria e a inteligência, e muitos previam um brilhante futuro para João
Peculiar, cuja fina figura, nariz pronunciado, queixo pontiagudo e polpudas
sobrancelhas, a que se juntava uma intencional careca, pois rapava o cabelo
rente, compunham, no entanto, um conjunto pouco simpático, que provocava receio
nos menos firmes de espírito». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória
do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT