sábado, 25 de julho de 2020

O Leopardo. Tomasi di Lampedusa. «Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais, levemente pútridos, como os líquidos destilados das relíquias de certos santos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Maio. 1860
«(…) Os raios do sol poente daquela tarde de Maio incendiavam a tez rosada e os cabelos cor de mel do Príncipe. Eram estes que denunciavam a origem alemã de sua mãe, aquela princesa Carolina cuja soberba, trinta anos atrás, havia enregelado a Corte um tanto negligente das Duas Sicílias. Mas no sangue fermentavam-lhe outras essências germânicas, e estas mais incómodas para um aristocrata siciliano, naquele ano de 1860, de que podiam ser atraentes numa pele clara e uns cabelos loiros no meio daquela gente de pele olivácea e cabelos negros. O seu temperamento autoritário, uma certa rigidez moral, a sua propensão às ideias abstractas, no ambiente moral um tanto mole da sociedade palermitana, haviam-se mudado, respectivamente, em tirania caprichosa, perpétuos escrúpulos morais e desprezo pelos seus parentes e amigos, os quais lhe pareciam andar à deriva nos meandros do vagaroso rio do pragmatismo siciliano. Ele era, numa família que, durante séculos, não havia nunca sequer sabido fazer a soma das despesas e a subtracção das dívidas, o primeiro e último a possuir uma forte e mais que notória inclinação para as ciências matemáticas. O Príncipe havia-as aplicado à astronomia e, desta forma, obtido com elas razoáveis sucessos públicos e belíssimos prazeres privados. Com efeito, a tal ponto, nele, o orgulho e a análise matemática se tinham associado, que alimentava a ilusão de que os astros obedeciam aos seus cálculos (como aliás pareciam fazer) e que os dois planetas que havia descoberto (chamara-lhes Salina e Esbelto em homenagem à sua propriedade e a um inesquecível perdigueiro) propagavam a fama da sua casa nas estéreis plagas do céu entre Marte e Júpiter. E, assim, os frescos da villa representariam mais uma profecia que a adulação de um pintor. Solicitado, por um lado, pelo orgulho e intelectualismo materno, por outro, pela sensualidade e condescendência do pai, o nobre Príncipe Fabrício vivia, sob a carranca de Zeus, em perpétuo descontentamento, entregando-se à contemplação da ruína da sua raça e do seu património sem dar mostras de qualquer actividade e, o que é mais, sem tentar pôr-lhe um termo. Aquela meia hora entre o rosário e o jantar era um dos momentos menos irritantes do dia e, horas antes, já de antegozava-lhes a calma equívoca.
Precedido de um Bendicó excitadíssimo, desceu a pequena escada que conduzia ao jardim. Encerrado entre três muros e um dos lados da villa, esta clausura conferia-lhe um ar de cemitério, acentuado ainda mais pelos montículos paralelos que ladeavam os pequenos canais de irrigação e que lembravam túmulos de gigantes magríssimos. Na argila avermelhada as plantas cresciam em espessa desordem; as flores surgiam ao deus-dará e as sebes de murta pareciam ali dispostas mais para impedir que para dirigir os passos. Ao fundo, uma Flora, manchada por líquenes amarelo-negros, exibia, com resignação, os seus mimos mais que seculares; de cada um dos lados um banco sustentava uma almofada bordada, comprida e enrolada, talhada, também ela, em mármore cinzento. A um canto, o oiro de uma acácia introduzia uma nota de alegria intempestiva. De todos aqueles torrões emanava uma sensação de beleza depressa amortecida pela indolência. Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais, levemente pútridos, como os líquidos destilados das relíquias de certos santos; o perfume apimentado das violetas sobrepunha-se ao aroma convencional das rosas e ao oleoso das magnólias que se concentravam nos cantos. Muito ao de leve, percebia-se ainda o perfume da hortelã-pimenta misturado ao aroma infantil da acácia e ao cheiro a confeitaria da murta. O perfume de alcova das primeiras flores das laranjeiras do pomar transbordava por cima do outro muro. Era um jardim para cegos. A vista constantemente se ofendia, mas o olfacto, esse, podia extrair dele um prazer violento, embora grosseiro. As rosas Paul Neyron, cujas estacas ele próprio adquirira em Paris, haviam degenerado. Primeiro estimuladas, depois extenuadas pelos sucos vigorosos e indolentes das terras sicilianas, queimadas por Julhos apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves cor de carne, obscenas, que destilavam, porém, um aroma denso, quase desonesto, que nenhum criador francês teria ousado esperar. O Príncipe levou uma delas ao nariz e foi como se aspirasse a coxa de uma bailarina da Ópera. Bendicó, a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado e apressou-se a ir procurar sensações mais saudáveis no meio do estrume e das lagartixas mortas.
Para o Príncipe, porém, aquele jardim perfumado foi causa de obscuras associações de ideias. Agora, sim, cheira bem, mas há um mês... Recordava a repugnância que as baforadas adocicadas haviam espalhado por toda a villa antes que tivesse sido removida a sua causa: o cadáver de um jovem soldado do Batalhão de Caçadores 5 que, ferido na escaramuça de S. Lourenço, contra as tropas rebeldes, tinha vindo morrer, sozinho, debaixo de um limoeiro. Haviam-no encontrado de bruços, no meio do trevo espesso, o rosto mergulhado no sangue e nos vómitos, as unhas cravadas na terra, coberto de formigas; sob as bandoleiras os intestinos violáceos haviam formado uma poça de lama. Tinha sido Russo, o guarda, a encontrar aquela coisa desfeita, a voltá-la, a cobrir-lhe o rosto com o seu lenço vermelho e, com um pau, a meter as entranhas para dentro do rasgão do ventre e cobrir depois a ferida com as abas azuis do capote, cuspindo continuamente de nojo, não precisamente em cima mas bastante perto do cadáver. Tudo isto com uma habilidade cuidadosa. O fedor destes malandros não pára nem quando estão mortos, dizia. E fora tudo o que comemorara aquela morte solitária». In Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, 1958, Dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-467-6.

Cortesia de EdomQuixote/JDACT