quarta-feira, 15 de julho de 2020

O Leopardo. Tomasi di Lampedusa. «Nas tapeçarias das paredes, os macacos voltavam a fazer momices às catatuas. Também os mortais da casa de Salina…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Maio. 1860
«Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. A recitação quotidiana do rosário terminara. Durante meia hora, a voz calma do Príncipe havia recordado os mistérios Gloriosos e Dolorosos; durante meia hora, outras vozes entremeadas haviam tecido um sussurro ondulante em que sobressaíam as flores de oiro de certas palavras insólitas: amor, virgindade, morte. Durante aquele sussurro o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas irisadas na seda das tapeçarias haviam-se mostrado intimidados; e, entre as duas janelas, Madalena, na qual todos habitualmente viam uma bela e opulenta loira, perdida não se sabe em que sonhos, tinha tomado uns ares de penitente. Calada, agora, a voz, tudo regressava à ordem na desordem do costume. Pela porta por onde os criados haviam saído, Bendicó, o grande cão de fila, a quem a forçada exclusão havia magoado, entrou e abanou o rabo. Lentamente, as senhoras principiaram a erguer-se e, aos poucos, o refluxo oscilante das suas saias ia deixando a descoberto os nus mitológicos desenhados no fundo leitoso dos azulejos. Apenas permanecia escondida uma Andrómeda, a quem a batina do padre Pirrone, atrasado nas orações suplementares, impediu, por um bom momento, de rever o seu prateado Perseu, que, sobrevoando as vagas, corria a libertá-la e a beijá-la. No fresco do tecto as divindades acordaram. Filas de tritões e dríades precipitavam-se dos montes e mares, entre nuvens cor de framboesa e lilás, em direcção a uma transfigurada Concha de Oiro, a fim de exaltar a glória da Casa de Salina; tão transbordantes de satisfação se mostravam que as mais elementares regras de perspectiva foram violadas. E os Deuses maiores, os príncipes entre os Deuses, Júpiter o Fulgurante, Marte o Carrancudo, Vénus a Langorosa, que haviam precedido a multidão dos Deuses menores, pareciam agora sustentar de boa vontade o escudo azul com o Leopardo dançando.
Sabiam perfeitamente que durante vinte e três horas e meia voltariam a ser os senhores da villa. Nas tapeçarias das paredes, os macacos voltavam a fazer momices às catatuas. Também os mortais da casa de Salina, sob aquele Olimpo palermitano, desciam apressadamente das altas esferas místicas. As raparigas compunham as pregas dos vestidos enquanto trocavam entre si rápidos olhares azulíneos e palavras na gíria do pensionato. Há mais de um mês, desde os motins do quatro de Abril, que as haviam mandado voltar do convento; agora, era com saudade que recordavam os dormitórios de baldaquins e a intimidade colectiva do Convento de Salvador. Os rapazes mais novos brigavam já pela posse de uma imagem de S. Francisco de Paula; o primogénito e herdeiro, o duque Paulo, começava já a sentir vontade de fumar, mas, com receio de o fazer na presença dos pais, contentava-se em apalpar, através da algibeira, a palha entrançada da cigarreira. Desenhava-se-lhe no rosto emaciado uma melancolia metafísica: o dia havia-lhe corrido mal, pois Guiscardo, o alazão irlandês, tinha-lhe parecido em má forma e Fanny não conseguira encontrar o meio (ou o desejo?) de fazer-lhe chegar à mão o habitual bilhetinho cor-de-rosa. Para que se havia então sacrificado o Redentor? Com insegura autoridade a Princesa deixou cair, secamente, o terço na bolsa bordada de azeviche, enquanto os seus belos olhos maníacos observavam os filhos escravos e o marido tirano. O seu corpo minúsculo projectava-se para este num vão desejo de domínio amoroso.
Entretanto, o Príncipe levantou-se e, ao choque do seu peso de gigante, o soalho estremecia. Durante uns instantes, os seus olhos claros reflectiam o orgulho daquela efémera confirmação do seu domínio sobre homens e coisas. Depois, poisou o enorme missal vermelho que estivera na sua frente durante a recitação do rosário e guardou o lenço em que apoiara o joelho; um pouco de mau humor turvou-lhe o olhar, quando viu a pequenina nódoa de café que, desde a manhã, havia ousado quebrar a vasta brancura do colete. Não era gordo; era apenas imenso e forte. A sua cabeça tocava (nas casas habitadas pelos mortais comuns) o florão inferior dos lustres, e os seus dedos sabiam dobrar como papel as moedas de ducado. Havia sempre, entre a villa Salina e a loja de um ourives, um contínuo vaivém a fim de se consertarem os garfos e as facas que a sua ira contida, à mesa, fazia frequentemente dobrar em arco. Aqueles dedos sabiam aliás usar de extrema delicadeza, quando acariciavam ou se entregavam a certas brincadeiras; e disto, para sua desgraça, se poderia lembrar Maria Stella, sua mulher; e, ainda, sob o seu toque delicado, os parafusos, os aros e botões esmerilados dos telescópios, óculos e pesquisadores de cometas, que enchiam, lá no alto da villa, o seu observatório particular, não sofriam qualquer dano». In Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, 1958, Dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-467-6.

Cortesia de EdomQuixote/JDACT