A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos
de Valdevez. Março de 1141
«(…) As minhas investigações
haviam sido inúteis. Ninguém ouvira falar do misterioso monge corcunda que nos
roubara o artefacto sagrado em Ourique. Mesmo assim e verdadeiramente
fascinado, o imperador perguntou: haveis tocado na Lança de Cristo? Afonso
Henriques contou-lhe como se apoderara da relíquia em Hisn Abi Cherif e como a
erguera no ar, exibindo-a às tropas, antes da batalha de Ourique. Relâmpagos haviam
caído em cima dos sarracenos, enquanto um raio de sol fazia brilhar a Lança de
Cristo. Um milagre! Um milagre..., repetiu o imperador, impressionado, antes de
recuperar a boa disposição e perguntar, com um sorriso matreiro. Porque não
organizamos umas festividades, para celebrar o fim das guerras? Gostava de
rever Chamoa... Ao meu melhor amigo, macho possessivo, não lhe agradava a
proximidade entre a sua amada e o primo. Mas, se acedesse ao pedido imperial,
ajudava Gomes Nunes. Chamoa só festejará se perdoardes ao pai dela. O imperador
prometeu que o faria, desde que dançasse com a minha cunhada!
Queridos filhos e netos, Afonso
VII era um grande rei, um guerreiro hábil e corajoso, um político audaz e sólido,
mas também um mestre da palavra secreta, do sopro silencioso ao ouvido dos frágeis,
um manipulador exímio das expectativas alheias. Por isso, foi um monarca tão
bem-sucedido, que conseguia quase sempre atingir os seus propósitos. Aceite o
acordo territorial e o reconhecimento real do primo, naquela mente felina
nascia já um malicioso estratagema. Não só teria Chamoa nos seus fortes braços,
como poderia soprar a tão mimosos ouvidos a sórdida intriga de Compostela...
Arcos de Valdevez, Março de 1141
Nessa noite, a maior parte dos
portucalenses nem reparou na dança emocionante do imperador com Chamoa, pois
estava verdadeiramente eufórica com a vibrante humilhação de Fernão Peres, que,
acabrunhado, logo se retirara com as respectivas tropas, regressando aos seus
domínios galegos. A belicosa família Trava fora finalmente vencida e os irmãos
Bermudo e Fernão teriam de partir para a Terra Santa, onde se arrependeriam do
mal que nos haviam causado. Apenas a mãe de Chamoa, Elvira Peres Trava, esteve
presente na ceia, apesar de contrariada com a debandada cabisbaixa dos irmãos.
O destino do marido estava por esclarecer e ela poderia ser a principal
beneficiária, caso Afonso VII banisse Gomes Nunes de Tui, pois ficaria a única
titular do condado da família. Agarrada com unhas e dentes ao seu estatuto,
Elvira esperou com espantosa tranquilidade a decisão do imperador, apenas
preocupada em criticar os repastos destinados por Teresa de Celanova. Minha mãe
é boa cozinheira, mas má-língua, comentou Chamoa.
A esposa de meu pai viera também
de Guimarães e tomara conta da organização da festa, a pedido de Afonso
Henriques. Nas redondezas de Arcos de Valdevez, os soldados haviam caçado ursos
e javalis, depois cozidos em grandes panelas e servidos aos convivas. Sopas,
legumes e até mariscos pescados em Vila do Conde foram aprimorados sob a
supervisão de Teresa de Celanova, mas a afiada língua de Elvira Peres Trava não
parou de desprezar a falta de paladar das iguarias, o que obrigou Chamoa a
pedir, mais uma vez, compreensão à organizadora. Minha mãe bebe um vaso de fel
todas as manhãs, desculpai-a! A bondosa Teresa de Celanova limitou-se a
encolher os ombros, pois não dava importância à antipática marafona, e o
repasto decorreu alegremente, com muitos brindes de vinho galego e animadas
risadas perante as actuações dos bobos e dos trovadores». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017,
ISBN 978-989-741-713-9.
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