quinta-feira, 23 de julho de 2020

Os Conquistadores de Lisboa. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Minha mãe é boa cozinheira, mas má-língua, comentou Chamoa. A esposa de meu pai viera também de Guimarães…»

jdact

A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos de Valdevez. Março de 1141
«(…) As minhas investigações haviam sido inúteis. Ninguém ouvira falar do misterioso monge corcunda que nos roubara o artefacto sagrado em Ourique. Mesmo assim e verdadeiramente fascinado, o imperador perguntou: haveis tocado na Lança de Cristo? Afonso Henriques contou-lhe como se apoderara da relíquia em Hisn Abi Cherif e como a erguera no ar, exibindo-a às tropas, antes da batalha de Ourique. Relâmpagos haviam caído em cima dos sarracenos, enquanto um raio de sol fazia brilhar a Lança de Cristo. Um milagre! Um milagre..., repetiu o imperador, impressionado, antes de recuperar a boa disposição e perguntar, com um sorriso matreiro. Porque não organizamos umas festividades, para celebrar o fim das guerras? Gostava de rever Chamoa... Ao meu melhor amigo, macho possessivo, não lhe agradava a proximidade entre a sua amada e o primo. Mas, se acedesse ao pedido imperial, ajudava Gomes Nunes. Chamoa só festejará se perdoardes ao pai dela. O imperador prometeu que o faria, desde que dançasse com a minha cunhada!

Queridos filhos e netos, Afonso VII era um grande rei, um guerreiro hábil e corajoso, um político audaz e sólido, mas também um mestre da palavra secreta, do sopro silencioso ao ouvido dos frágeis, um manipulador exímio das expectativas alheias. Por isso, foi um monarca tão bem-sucedido, que conseguia quase sempre atingir os seus propósitos. Aceite o acordo territorial e o reconhecimento real do primo, naquela mente felina nascia já um malicioso estratagema. Não só teria Chamoa nos seus fortes braços, como poderia soprar a tão mimosos ouvidos a sórdida intriga de Compostela...

Arcos de Valdevez, Março de 1141
Nessa noite, a maior parte dos portucalenses nem reparou na dança emocionante do imperador com Chamoa, pois estava verdadeiramente eufórica com a vibrante humilhação de Fernão Peres, que, acabrunhado, logo se retirara com as respectivas tropas, regressando aos seus domínios galegos. A belicosa família Trava fora finalmente vencida e os irmãos Bermudo e Fernão teriam de partir para a Terra Santa, onde se arrependeriam do mal que nos haviam causado. Apenas a mãe de Chamoa, Elvira Peres Trava, esteve presente na ceia, apesar de contrariada com a debandada cabisbaixa dos irmãos. O destino do marido estava por esclarecer e ela poderia ser a principal beneficiária, caso Afonso VII banisse Gomes Nunes de Tui, pois ficaria a única titular do condado da família. Agarrada com unhas e dentes ao seu estatuto, Elvira esperou com espantosa tranquilidade a decisão do imperador, apenas preocupada em criticar os repastos destinados por Teresa de Celanova. Minha mãe é boa cozinheira, mas má-língua, comentou Chamoa.
A esposa de meu pai viera também de Guimarães e tomara conta da organização da festa, a pedido de Afonso Henriques. Nas redondezas de Arcos de Valdevez, os soldados haviam caçado ursos e javalis, depois cozidos em grandes panelas e servidos aos convivas. Sopas, legumes e até mariscos pescados em Vila do Conde foram aprimorados sob a supervisão de Teresa de Celanova, mas a afiada língua de Elvira Peres Trava não parou de desprezar a falta de paladar das iguarias, o que obrigou Chamoa a pedir, mais uma vez, compreensão à organizadora. Minha mãe bebe um vaso de fel todas as manhãs, desculpai-a! A bondosa Teresa de Celanova limitou-se a encolher os ombros, pois não dava importância à antipática marafona, e o repasto decorreu alegremente, com muitos brindes de vinho galego e animadas risadas perante as actuações dos bobos e dos trovadores». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                                                                                       
Cortesia da CasadasLetras/JDACT