Baudolino
encontra Nicetas Coniates
«(…) Estás louco, senhor Nicetas. Primeiro, me fazes descer até
aqui e abandonar o meu cavalo, enquanto eu poderia chegar ao Neórion sozinho,
indo inclusive pelas ruas. Segundo, pensas que podes chegar à tua família antes
que te parem outros dois soldados, como aqueles com os quais te encontrei? E
mesmo se conseguires, o que farás? Cedo ou tarde alguém descobre teu
esconderijo, e se esperas apanhar os teus e fugir, para onde irás? Tenho amigos
em Selímbria, disse Nicetas, perplexo. Não sei onde fica, mas antes de chegar
até lá terás de sair da cidade. Ouve bem, não poderás fazer nada pela tua
família. E, todavia, para onde te levarei encontraremos amigos genoveses, que
fazem e acontecem nesta cidade, estão acostumados a tratar com os sarracenos,
com os hebreus, com os monges, com a guarda imperial, com os mercadores persas,
e, agora, com os peregrinos latinos. É uma gente astuta, dirás a eles onde está
a tua família e eles amanhã hão-de levá-la até onde nos encontrarmos, como, não
sei, mas irão fazê-lo. E o fariam de qualquer jeito por mim, que sou um velho
amigo, e por amor a Deus, mas são
genoveses, e se lhes deres algum presente, tanto melhor. Depois ficaremos lá
até que as coisas se acalmem, pois, como sempre, um saque não dura mais do que
alguns dias, acredite em mim, vi muitos deles. E depois, para Selímbria, ou
aonde quiseres. Nicetas agradeceu, convencido. E, enquanto caminhavam,
perguntou-lhe por que estava na cidade, senão era um peregrino crucífero. Cheguei
quando os latinos já haviam desembarcado na outra margem, com outras pessoas...,
que agora não existem mais. Vínhamos de muito longe. Porque não deixaste a
cidade enquanto havia tempo? Baudolino hesitou antes de responder: porque...,
porque tinha de estar aqui para entender uma coisa. E afinal a entendeste? Infelizmente
sim, mas somente hoje. Outra pergunta. Por que te preocupas tanto comigo? Que
mais deveria fazer um bom cristão? Mas no fundo tens razão. Bastava que te
libertasse daqueles dois e que te deixasse fugir por conta própria, e todavia
estou aqui junto de ti como uma sanguessuga. Senhor Nicetas, sei que és um
escritor de histórias, tal como era o bispo Oto de Freising. Mas quando conheci
o bispo Oto, antes dele morrer, eu era ainda um menino, e não tinha uma
história, queria apenas conhecer as histórias dos outros. Agora já poderia ter
minha história, porém não somente perdi tudo o que escrevi sobre meu passado, mas, ao tentar evocá-lo, minhas
ideias se confundem. Não que não recorde os factos, sou incapaz de lhes dar
sentido. Depois do que me aconteceu hoje, tenho que falar com alguém, senão
acabarei perdendo a razão. O que te aconteceu hoje?, perguntou Nicetas,
arrastando-se com dificuldade dentro d’água, era mais jovem do que Baudolino,
mas a sua vida de estudioso e de cortesão deixara-o gordo, preguiçoso e fraco.
Matei um homem. Foi aquele que há praticamente quinze anos
assassinou meu pai adoptivo,
o melhor dos reis, o imperador Frederico. Mas
Frederico morreu afogado na Cilícia! É o
que todos pensam. No entanto, foi assassinado. Senhor Nicetas, tu me viste
furioso, dando golpes de espada esta noite em Santa Sofia, mas saibas que em
toda a minha vida jamais derramei o sangue de alguém. Sou um homem de paz.
Dessa vez tive que matar, eu era a única pessoa
que podia fazer justiça. Tu me contarás tudo. Mas diz-me como chegaste tão
providencialmente em Santa Sofia para
salvar-me a vida. Enquanto os peregrinos começavam a saquear a cidade, entrei num
canto escuro. Saí ao anoitecer, uma hora atrás, e me encontrei junto do
Hipódromo. Fui praticamente arrastado por uma multidão de gregos que fugiam,
gritando. Corri na direcção
do passadiço de uma casa parcialmente queimada, para deixá-los passar, e logo
que passaram vi os peregrinos que os perseguiam. Compreendi o que estava
acontecendo e, de repente, passou-me pela cabeça essa exacta verdade: que eu era um latino e não um grego, mas
antes mesmo que aqueles latinos embrutecidos percebessem, não haveria qualquer
diferença entre mim e um grego morto. Mas não pode ser, dizia de mim para mim,
eles não vão querer destruir a maior cidade da Cristandade, justo agora que a
conquistaram... Depois lembrei que, quando seus antepassados entraram em
Jerusalém, nos tempos de Godofredo de Bulhão, ainda que a cidade acabasse nas suas mãos, não deixaram de matar a todos, mulheres, crianças,
animais domésticos; e foi uma bênção não terem queimado por engano o Santo
Sepulcro. É verdade que eram cristãos e que estavam entrando numa cidade de
infiéis, mas justamente na
minha viagem percebi quanto os cristãos podem esfolar uns aos outros por uma
simples palavra, e como se sabe, há muitos anos os
nossos padres brigavam com os vossos sobre a questão do Filioque. Mas afinal isso tudo é conversa, quando
um guerreiro entra numa cidade não há religião
que resista. O que fizeste, então? Saí do passadiço, seguindo
rente às muralhas, até chegar ao Hipódromo. E lá vi a beleza perder o viço e
tornar-se uma coisa triste. Sabes, desde que cheguei à cidade, ia até lá de vez
em quando para contemplar a estátua daquela jovem, a de pés bem torneados,
braços que parecem de neve e lábios vermelhos, aquele sorriso, e os seios, e as
vestes e os cabelos que dançavam ao vento, de modo que, ao vê-la de longe,
ninguém podia acreditar que fosse de bronze, porque
parecia de
carne viva...» In Umberto Eco, Baudolino, 2001,
tradução de Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN
978-857-799-002-3.
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