quarta-feira, 29 de julho de 2020

Gritos do Passado. Camila Läkberg. «O bebé, com toda a sua gritaria, sua necessidade de carinho e sua demanda por algo que ela não lhe poderia dar. Era por causa do bebé…»

 Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando Patrik chegou, a actividade já era frenética. A entrada da Passagem do Rei havia sido fechada com um cordão de isolamento, e ele contou três carros de polícia e uma ambulância. Os peritos criminais vindos de Uddevalla estavam atarefados, e ele sabia que não devia ir entrando directo na cena do crime. Esse era um erro de polícia novato, o que não impedia seu chefe, o delegado Mellberg, de ficar andando de um lado para outro da área. Os peritos olhavam desalentados para os sapatos e as roupas dele, que naquele momento acrescentavam milhares de fibras e partículas ao seu delicado local de trabalho. Enquanto Patrik se manteve do lado de fora da fita amarela, Mellberg passou por cima dela e saiu da área, para grande alívio da equipa. Olá, Hedström, saudou o delegado. Sua voz estava calorosa, quase efusiva, e Patrik ficou surpreso. Por um instante, achou que Mellberg fosse lhe dar um abraço, mas felizmente isso não aconteceu. Apesar disso, o chefe parecia-lhe totalmente mudado. Fazia apenas uma semana que Patrik saíra de férias, mas o homem diante de si não era o mesmo que ele deixara sentado cabisbaixo à sua mesa, resmungando que o mero conceito de férias deveria ser abolido. Mellberg apertou a mão de Patrik com entusiasmo e deu-lhe uma chapadinha nas costas. E aí, como está a galinha choca em casa? Algum sinal de que vai ser pai logo? Não pelo próximo mês e meio, dizem eles. Patrik ainda não fazia ideia do porquê de tanto bom humor da parte de Mellberg, mas pôs de lado a surpresa e tentou concentrar-se no motivo de ter sido chamado ao local. E então, o que descobriu? Mellberg fez um esforço para apagar o sorriso da face e apontou para o interior sombrio da fenda. Um garoto de seis anos saiu escondido de casa hoje de manhã enquanto os pais dormiam e veio para cá brincar de cavaleiro entre as rochas. Em vez disso, ele encontrou uma mulher morta. Recebemos o chamado às 6h15.
Quanto tempo, os peritos tiveram para examinar a cena do crime? Eles chegaram faz uma hora. A ambulância chegou primeiro, e os paramédicos atestaram de imediato que não seria necessário nenhuma ajuda médica. Desde então, os peritos puderam trabalhar à vontade. Eles são um pouco sensíveis… Eu só queria entrar e dar uma olhada, e a reacção deles foi bem grosseira, se quer saber. Bom, acho que passar o dia inteiro rastejando, procurando fibras com uma pinça, deixa qualquer um meio puto da vida. Agora, Patrik reconhecia o chefe. Esse era mais o tom de Mellberg. Mas Patrik sabia por experiência que não adiantava tentar mudar as opiniões dele. Era mais fácil deixar que seus comentários entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro. O que sabemos sobre ela? Nada ainda. Achamos que tem por volta de vinte e cinco. A única peça de roupa que encontramos, se é que dá para considerar assim, foi uma bolsa. Fora isso, ela está nua em pelo. Belos peitos, aliás. Patrik fechou os olhos e repetiu para si mesmo, como um mantra mental: não falta muito para ele se aposentar, não falta muito para ele se aposentar… Mellberg prosseguiu desatento. A causa da morte não foi confirmada, mas ela foi espancada com violência. Contusões por todo o corpo e vários ferimentos que parecem facadas. E ainda há o facto de que ela está deitada sobre um cobertor cinza. O médico legista a está examinando agora, e esperamos um relatório preliminar para logo mais. Alguém mais ou menos dessa idade foi dado como desaparecido recentemente? Não, nem de perto. Um homem de idade foi dado como desaparecido faz mais ou menos uma semana, mas no fim ele só se tinha cansado de viver enjaulado com a mulher num trailer e fugiu com uma garota que conheceu no Galären Pub. Patrik viu que a equipa que rodeava o corpo se preparava agora para colocá-lo com cuidado dentro de um saco para cadáveres. As mãos e os pés haviam sido ensacados de acordo com as normas para preservar qualquer evidência.
Os peritos criminais de Uddevalla coordenaram os seus movimentos para colocar a mulher no saco da forma mais eficiente possível. Então o cobertor sobre o qual ela estivera também foi colocado num saco plástico para exame posterior. A expressão de choque nas suas faces e o modo como ficaram paralisados revelaram a Patrik, de imediato, que algo inesperado acontecera. O que foi?, perguntou ele. Não vão acreditar nisso, respondeu um dos polícias, mas encontramos ossos aqui. E dois crânios. Pela quantidade de ossos, eu diria que são suficientes para dois esqueletos.

Verão de 1979
Ela oscilava de um lado para outro enquanto pedalava de volta para casa, numa luminosa noite de Verão. A festa fora um pouco mais maluca do que ela imaginara, mas isso não tinha importância. Ela era adulta, afinal de contas, e podia fazer o que bem entendesse. O melhor tinha sido poder ficar longe da menina por algum tempo. O bebé, com toda a sua gritaria, sua necessidade de carinho e sua demanda por algo que ela não lhe poderia dar. Era por causa do bebé, enfim, que ela ainda tinha de morar com a mãe, aquela velha que mal a deixava afastar-se de casa alguns metros, embora ela já tivesse 19 anos. Havia sido um milagre a mãe ter permitido que saísse essa noite para comemorar o solstício de Verão. Se não fosse pela criança, ela agora já estaria morando sozinha; poderia tentar ganhar o seu próprio dinheiro. Poderia sair sozinha quando quisesse e voltar quando lhe desse na telha, e ninguém iria dizer nada. Mas com a menina era impossível. Ela preferia entregar a criança para a adopção, mas a velha não queria nem ouvir falar disso, e agora era ela quem pagava o preço. Se sua mãe queria a menina tanto assim, por que não cuidava dela sozinha? A velha ia ficar furiosa de verdade quando ela chegasse cambaleando daquele jeito no meio da madrugada. Seu hálito cheirava a álcool, e com certeza mais tarde teria que pagar por isso. Mas valera a pena. Ela não se divertia assim desde o nascimento da pestinha.
Passou recto pelo cruzamento onde ficava o posto de gasolina e seguiu mais um pouco pela estrada. Então virou à esquerda, na direçcão de Bräcke, mas perdeu o equilíbrio e quase caiu na vala ao lado da estrada. Endireitou-se e pedalou com mais força, conseguindo algum impulso para subir a primeira ladeira. O vento soprava no seu cabelo, e a noite clara de verão fora dominada por um silêncio completo. Por um instante, ela fechou os olhos e pensou naquela noite luminosa de verão em que o alemão a engravidou. Tinha sido uma noite maravilhosa e proibida, mas não valeu o preço que ela teve que pagar ao final. De repente, ela abriu os olhos quando a bicicleta chocou contra algo. A última coisa de que se lembrava era o chão vindo na sua direcção a grande velocidade». In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».

Cortesia de EdomQuixote/JDACT